RECURSO ESPECIAL Nº 1.698.730 - SP (2016/0146726-1)
RELATÓRIO
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE:
Serpal Engenharia e Construção Ltda. e Outros interpõem recurso especial, fundado no art. 105, III, a, da Constituição Federal em contrariedade a acórdão proferido, por unanimidade de votos, pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Subjaz ao presente apelo nobre medida cautelar de arresto promovida por Continental do Brasil Produtos Automotivos Ltda. contra Serpal Engenharia e Construção Ltda (e Augusto Quirós e Priscila Quirós, bem como a empresa Gruprime, por serem proprietários formais dos bens cujo arresto se pretende), em que se objetiva, a pretexto de dar eficácia ao provimento jurisdicional indenizatório perseguido na arbitragem já instaurada entre as partes, o deferimento de arresto de bens, devidamente individualizados na inicial, sem prejuízo da indicação de outros, ou de outras medidas acautelatórias de idêntica ou diversa natureza que se fizessem necessárias para assegurar a exequibilidade integral do valor total da indenização reclamada na arbitragem. Pretendeu-se, ainda, "após a efetivação do arresto, [...] a desconsideração da personalidade jurídica da ré Serpal para que a medida de arresto pudesse incidir sobre o patrimônio de seu proprietário e administrador, Sr. Juan Quirós", citando-se seus filhos, Sr. Augusto Quirós e Priscila Quirós, bem como a empresa Gruprime, por serem proprietários formais dos bens (por doação) cujo arresto se pretende.
Para tanto, Continental do Brasil Produtos Automotivos Ltda noticiou ter, em 17/1/2011, firmado contrato de Prestação de Serviços e Obras de Engenharia para a realização de obras de expansão de sua fábrica de pneus em Camaçari, Bahia, no valor de R$ 129.900.000,00 (cento e vinte e nove milhões e novecentos mil reais). Informou que, nos termos contratados, antes mesmo do início das obras, antecipou à demandada a quantia de R$ R$ 38.970.000,00 (trinta e oito milhões, novecentos e setenta mil reais), equivalente a 30% do valor do ajuste. Segundo alegado, com apenas cinco meses da contratação, a Serpal passou a solicitar recursos adicionais, sob a ameaça de paralisação das obras, o que ensejou o pagamento de outros R$ 40.000.000,00 (quarenta milhões de reais). Não obstante, assentou a autora, foram constatados inúmeros atrasos na obra, logo nos primeiros sete meses de contratação. Anotou que, em e-mail datado de 16/4/2012, representante da Serpal solicitou a alteração da condição contratual de empreitada total por preço fechado para administração conjunta de recursos e o pagamento de aproximadamente R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais) adicionais. Afirmou que, ao buscar informações sobre a situação financeira da Serpal, descobriu que a construtora enfrentava sérias dificuldades financeiras, com inúmeros protestos, cobranças, execuções e pedidos de falência, tudo a levantar fortes indícios de que boa parte dos recursos antecipados não teria sido empregado na obra. Nesse contexto, asseverou ter declarado a resolução do contrato, operada de pleno direito por expressa disposição contratual, por meio de prévia notificação encaminhada em 14/5/2012.
Assinalou que os prejuízos suportados estão estimados em mais de R$ 100.000.000,00 (cem milhões de reais), cuja reparação é objeto de Procedimento Arbitral por ela devidamente instaurado contra a Serpal perante o Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-Canadá.
Para efeito do arresto pretendido, aduziu que o seu crédito (de mais de R$ 100.000.000,00 - cem milhões de reais), a ser apurado na arbitragem, encontra lastro em prova inequívoca do inadimplemento da Serpal, devidamente acostado aos autos (relatório produzido pela empresa de engenharia "TimeNow", que atesta que a Serpal entregou apenas 60;32% da obra; a Seguradora Itaú Seguros, após minucioso processo de regulação reconheceu em caráter definitivo a ocorrência do inadimplemento; contratação de nova empreiteira para refazer parte da obra mal executada e concluir os 40% restante; previsão de conclusão da obra em julho de 2013, mais de um ano após o planejamento original; entre outras).
Em relação à urgência da medida, alegou que, por meio de movimentações societárias, com manifesto desvio de finalidade na utilização da personalidade jurídica da empresa, e de transmissão de patrimônio a terceiros, a requerida incorreu em fraude contra seus credores, de modo a frustrar o cumprimento de suas obrigações, notadamente aquelas decorrentes do inadimplemento ao contrato estabelecido entre as partes. Segundo noticiado, "entre a Ré Serpal e o Sr. Juan Quirós existiam/existem nada menos do que 4 (quatro) diferentes empresas de prateleira (Seginus, Zaurak S.A., NB Participações e FIP), que jamais possuíram qualquer operação, funcionários, escritórios, etc., e que apenas existem no papel com o propósito de distanciar a construtora de seu efetivo dono". Em relação às alterações societárias, noticiou que:
Em 2010, houve uma cisão total da Seginus, vertendo seu patrimônio para a empresa Advento Particpações S.A ("Advento"), que tinha como seu acionista controlador Sr. Juan Quirós. Diante dessa nova reestruturação, as quotas do capital social que pertenciam à Seginus foram transferidos à Advento, fazendo com que esta última empresa se tornasse controladora direta da Serpal e, ao mesmo tempo, tornando a Zaurak acionista da Advento. O controle da Ré Serpal permaneceu com o Sr. Juan Quirós. [...] Em 25.7.2012, A NP Participações (empresa controladora da Ré Serpal e detida e administrada pelo Sr. Juan Quirós) adquiriu a participação societária do FIP na Zaurak, consolidando seu controle sobre a Ré Serpal. Ato contínuo, o Sr. Juan Quirós e sua esposa retiraram-se do quadro societário da empresa NB Participações (última empresa da cadeia de controle), mantendo apenas as suas participações 'laterais' nas empresas controladas, com 0,01% de capital. Com isso, o casal foi substituído no controle da Ré Serpal por pessoa desconhecida - à Sra. Lourdes Cardoso - residente e domiciliada no imóvel [descrito no Doc. 25, de todo incompatível com tal condição]. Mais recentemente, em 2.4.2013, também a sede da empresa NB Participações Ltda. foi transferida para a residência da foto acima, após a empresa ter sido convertida em EIRELI (empresa individual de responsabilidade limitda). Observe-se que a NB Participações encontra-se na ponta do grupo, sendo o alter-ego da Ré Serpal. Na nova ficha cadastral da empresa (Doc. n. 26) sequer constam os nomes do Sr. Juan Quirós e sua esposa. Não é preciso dizer mais. Com o devido respeito e acatamento, não é crível que uma construtora que chegou a faturar mais de 1 bilhão de reais por ano, que sempre foi contratada por grandes multinacionais para realização de obras estratégicas, seja controlada por empresa que possui sede no endereço acima detalhado. Obviamente, a alteração do quadro societário na NB Participações levada a efeito pelo Sr. Juan Quirós tem única e exclusivamente o propósito de blindagem patrimonial do Sr. Juan Quirós. Valendo-se da estrutura acima, o Sr. Juan Quirós logrou até o momento aumentar o seu patrimônio e ao mesmo tempo protegê-lo e ocultá-lo.
Assinalou, ainda, ter havido crescimento vertiginoso do patrimônio pessoal de Juan Quirós e de seus familiares, inclusive com a utilização de imóveis registrados em nome de empresas detidas por offshores estabelecidas no exterior, no mesmo período do endividamento da Serpal, em especial durante a relação contratual estabelecida entre as partes.
Demonstrou, segundo entende, que, diante do uso desvituado da personalidade jurídica da Serpal, há a necessidade de se desconsiderá-la para atingir os bens de Juan Quirós, que foram destinados a familiares próximos, com o claro propósito de blindar tal patrimônio das dívidas, por ele assumidas, em nome da Serpal. Teceu considerações pontuais sobre determinados bens, que, segundo alegado, foram alienados gratuitamente aos seus filhos com o aludido fim (e-STJ, fls.1-31).
Em 18/6/2013, o pedido de arresto foi deferido liminarmente, recaindo sobre bens que, formalmente, são da titularidade de terceiros, desconsiderando-se a personalidade jurídica da ré, com a inclusão no polo passivo da lide de Juan Quirós, bem como de Augusto Quirós, Priscila Quirós, Grupime Participações Ltda., Seginus Participações Ltda, Zaurak S.A. Advento Participações S.A., NB Participações Ltda. e NTLL Participações Ltda. (e-STJ, fls. 512-531).
A pretensão posta foi integralmente rechaçada pelos demandados, em sua peça contestatória (e-STJ, fls. 732-780 e 1.470-1.494).
Diante da notícia trazida pelas partes acerca da efetiva instituição da arbitragem (Processo Arbitral n. 29/2013/SECI), o Juízo da 30ª Vara Cível da Comarca de São Paulo solicitou ao Tribunal Arbitral da Câmara de Comércio Brasil-Canadá que se pronunciasse "sobre a ratificação ou retificação das mencionadas decisões, permitindo, assim, o correto atendimento ao disposto no art. 22, § 4º da Lei n. 9.307/96" (e-STJ, fls. 1.849-1851).
O Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá esclareceu ao Juízo que não constitui Tribunal Arbitral, mas apenas oferece seu regulamento para reger a arbitragem e serviços de secretaria para o procedimento, devendo as informações solicitadas serem encaminhadas ao Presidente do Tribunal Arbitral competente, Dr. Carlos Alberto Carmona, bem como aos seus membros Dra. Ellen Grace Northfleet e Dr. Carlos Ari Sundfeld (e-STJ, fls. 1.869-1.870).
Instado a se manifestar sobre a ratificação, ou não, da decisão estatal que deferiu o arresto e determinou a desconsideração da personalidade jurídica, o Tribunal Arbitral reputou não ser competente para conhecer de tais pretensões, sob o argumento de que o decisum repercutiu na esfera de direito de terceiros, não signatários da cláusula compromissória arbitral, sendo certo, ainda, que a matéria não foi deduzida pelas partes (e-STJ, fls. 1.875-1880). Do que consta dos autos, não houve insurgência contra essa decisão arbitral.
Ao final, o Juízo da 30ª Vara Cível da Comarca de São Paulo confirmou a liminar anteriormente deferida, em todos os seus termos (o arresto dos bens indicados na inicial, com a desconsideração da personalidade jurídica da empresa ré, (e-STJ, fls. 1.881-1.914).
Irresignados, os demandados contrapuseram recurso de apelação, ao qual o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negou provimento, em acórdão assim ementado:
Cautelar de arresto. Em sede de cautelar não se discute direito material. Questões outras devem observar o devido processo legal em processo de conhecimento amplo ou como ajustado entre as partes - arbitragem, e nada além disso. Decadência da medida cautelar não caracterizada. Bens descritos foram objetos de doações para filhos do representante legal da devedora. Operação atípica se faz presente. Pessoa jurídica devedora que se encontra em situação financeira adversa. Desconsideração da personalidade jurídica deve prevalecer. Apelo desprovido.
Opostos embargos de declaração, estes foram rejeitados, com imposição de multa (e-STJ, fls. 2.470-2.473).
Nas razões de seu recurso especial, os insurgentes sustentam, preliminarmente, que o Tribunal de origem incorreu em omissão, na medida em que deixou de analisar a alegação aventada em seu apelo acerca da necessidade de justificação prévia e prestação de caução para a concessão do arresto. Ressaltam, ainda, que o julgado revela-se omisso quanto às questões aventadas afetas à aplicação do art. 50 do Código Civil. No ponto, assinalam que, instada a se manifestar em sucessivos embargos de declaração, a Corte estadual inadvertidamente impôs-lhes multa prevista no parágrafo único do art. 538 do CPC/1973.
No mérito, aduzem, em suma, que o acórdão recorrido deixou de reconhecer a cessação de eficácia da medida cautelar de arresto ante a não propositura da ação principal, nos termos do art. 406 do CPC/1973, "em relação aos 'desconsiderados', expressamente incluídos no polo passivo pelo e. Juízo".
Alegam, ainda, não se afigurarem presentes os requisitos exigidos para o deferimento de cautelar de arresto, bem como para a desconsideração da personalidade da recorrente Serpal (e-STJ, fls. 2.475-2.505).
A parte adversa apresentou contrarrazões (e-STJ, fls. 2.621-2.638).
É o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.698.730 - SP (2016/0146726-1)
VOTO
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE (RELATOR):
1. Negativa de Prestação Jurisdicional. Não ocorrência.
Preliminarmente, argumentam os insurgentes que o Tribunal estadual, embora instado para tanto, deixou de proferir juízo de valor quanto à necessidade de prestação de caução, na medida em que, segundo dispunha o art. 816, II, do CPC/1973, o juiz poderia conceder arresto, sem justificação prévia, desde que fosse prestada caução.
Diversamente do alegado, a Corte estadual manteve, expressamente, o entendimento exarado na sentença, segundo o qual se afigurou desnecessária a prestação de caução, por não existir nenhum indicativo de que a autora não dispõe de condições financeiras para arcar com eventual condenação por danos em face dos demandados.
É o que, claramente, se constata do seguinte excerto do acórdão dos aclaratórios:
[...] Quanto à alegação de omissão sobre a prestação de caução, cabe frisar que foi negado provimento ao recurso de apelação, consequentemente, mantido o entendimento do MM. Juiz a quo, que concluiu pela desnecessidade da prestação de caução na hipótese, ante a ausência de indícios de que a requerente não possui capacidade financeira para suportar eventual condenação por danos em relação aos requeridos.
Insistem os recorrentes, ainda, no argumento de que o Tribunal de origem teria deixado de apreciar as questões suscitadas a respeito da aplicação do art. 50 do Código Civil, acerca do preenchimento dos requisitos da desconsideração da personalidade jurídica da empresa Serpal.
A alegação, de igual modo, revela-se de todo insubsistente.
No ponto, o Tribunal de origem, reconhecendo o acerto da fundamentação exarada na sentença em todos os seus termos, assentou encontrarem-se presentes fatos concretos que evidenciam o esvaziamento patrimonial da empresa Serpal, com o propósito de impedir a satisfação dos credores, em especial o da ora recorrida, em benefício de terceiros, por meio de doações a seus parentes próximos, o que autoriza, em sua compreensão, a desconsideração da personalidade jurídica.
Pela relevância, transcreve-se excerto do acórdão recorrido em se que se deu o enfrentamento da questão:
[...] Por outro lado, na hipótese vertente foram demonstradas as doações realizadas por Juan Quirós para os filhos, enquanto que a empresa Serpal não comprovou estar apta financeiramente a suportar os pretensos créditos do polo ativo. Assim, não pode sobressair o formalismo exacerbado, mas, ao contrário, devem ser levadas em consideração as peculiaridades ocorridas quanto às doações dos imóveis e aquisições de outros, configurando aspectos atípicos de relações negociais.
[...] Alegações genéricas e superficiais de inexistência de crédito não podem prevalecer, ante a ocorrência de relação negocial entre as partes, inclusive abrangendo paralisação de obras e outros itens correlatos, logo, a pretensão do autor está em condições de sobressair.
A desconsideração da personalidade jurídica em sede de arresto também se apresenta devidamente fundamentada na sentença, e não foi declarada por acaso, mas, ao contrário, as doações existentes envolvendo pais e filhos dão supedâneo a tanto, corroborado ainda com a dificuldade financeira da empresa Serpal, o que é suficiente para a caracterização da anomalia nas diversas transações, por conseguinte, nada existe para ser alterado na decisão apelada.
A compreensão externada no aresto recorrido encontra-se consentânea com os fundamentos adotados na sentença, que foram expressamente reafirmados e mantidos.
Assim, independentemente do acerto da convicção exarada na origem ? o que se deve inferir por ocasião da análise de seu mérito ?, verifica-se que o aresto recorrido, ainda que conciso, mas com clara adoção dos exaurientes fundamentos adotados na sentença, não padece dos vícios de julgamento apontados.
Não obstante, afigurando-se claro que os embargos de declaração opostos na origem tinham por propósito obter o prequestionamento da matéria alegada, tal como sustentam os ora recorrentes, alternativamente, há que se afastar a multa prevista no parágrafo único do art. 538 do CPC/1973, com lastro no enunciado n. 98 da Súmula do STJ.
2. Mérito.
Extrai-se dos autos que Continental do Brasil Produtos Automotivos Ltda. firmou contrato de prestação de serviços e obras de engenharia com a ora recorrente Serpal Engenharia e Construção Ltda., para a realização de obras de expansão de sua fábrica de pneus em Camaçari, Bahia, em que se estabeleceu cláusula compromissória arbitral.
Em virtude de alegado inadimplemento contratual por parte da Serpal, que teria, inclusive, adotado atos de alteração societária e de esvaziamento patrimonial destinados a prejudicar seus credores, a Continental, antes mesmo da instauração do Juízo arbitral, promoveu, perante o Juízo estatal, ação cautelar de arresto sobre bens de titularidade de terceiros, cumulada com pedido de desconsideração da personalidade jurídica. Pretendeu-se, assim, a partir da desconsideração da personalidade jurídica da Serpal, atingir não apenas bens do sócio controlador Juan Quirós, mas também de seus filhos e de outras empresas interpostas, os quais, a despeito de não serem sócios da devedora, teriam recebido de Juan Quirós os referidos bens fraudulentamente, em detrimento dos credores.
O pedido de arresto foi deferido, liminarmente, recaindo sobre bens que, formalmente, são da titularidade de terceiros, desconsiderando-se a personalidade jurídica da ré, com a inclusão no polo passivo da lide de Juan Quirós, bem como de Augusto Quirós, Priscila Quirós, Grupime Participações Ltda., Seginus Participações Ltda., Zaurak S.A. Advento Participações S.A., NB Participações Ltda. e NTLL Participações Ltda. (e-STJ, fls. 512-531 e 674).
Rememore-se ainda ? porque relevante para o desfecho da controvérsia posta ? que, após a instauração do Juízo arbitral, o Juízo estatal instou-o "sobre a ratificação ou retificação" de tal provimento cautelar". O Juízo arbitral, por reconhecer, em síntese, que o decisum repercutiu na esfera de direito de terceiros, não signatários da cláusula compromissória arbitral, reputou não ser competente para tanto, inclusive porque a questão não foi deduzida pelas partes.
Ao final, a decisão liminar foi integralmente ratificada pelo Juízo estatal e mantida pelo Tribunal de origem.
Nesse contexto, a primeira e principal controvérsia aventada no recurso especial está em saber se a demandante Continental deveria ou não promover a ação principal perante o Juízo arbitral contra todos os demandados, e não apenas contra a parte contratante, no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de perda de eficácia, levando-se em conta a finalidade exclusivamente acessória e acautelatória do arresto.
Para o desate da questão posta, devem-se examinar, de início, os limites e o escopo da atuação cautelar da jurisdição estatal, em havendo estipulação de arbitragem. Relevante, no ponto, inclusive, considerar a natureza do provimento cautelar de arresto e sua finalidade precípua.
Há que se inferir, ainda, se o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, mesmo que veiculado, inicial e cautelarmente, perante o Juízo estatal, é matéria de competência do Juízo arbitral e, como tal, deveria ser necessariamente a ele submetido a julgamento em momento subsequente. Esta análise dar-se-á com especial enfoque na delimitação subjetiva da arbitragem, que, em regra, envolve apenas as partes signatárias da cláusula compromissória arbitral, nos efeitos subjetivos da sentença arbitral e na necessidade de preservação do contraditório e do devido processo legal.
Pois bem. Estabelecida a cláusula compromissória, por meio da qual as partes signatárias ajustam a convenção de arbitragem, incumbe, a partir de então, ao Juízo arbitral solver eventuais conflitos de interesses, determinados ou não, advindos da relação contratual subjacente, inclusive em tutela de urgência, seja acautelatória, seja antecipatória.
Naturalmente, porque privada dos atributos da coercibilidade e da executoriedade de seus provimentos, a decisão proferida pelo Juízo arbitral, em tutela de urgência, caso não seja espontaneamente cumprida pela parte à qual se destina, pode ser executada no âmbito do Poder Judiciário.
De modo a viabilizar o acesso à justiça, caso a arbitragem, por alguma razão ainda não tenha sido instaurada, toda e qualquer medida de urgência pode ser intentada perante o Poder Judiciário, para preservar direito sob situação de risco da parte postulante e, principalmente, assegurar o resultado útil da futura arbitragem.
É relevante destacar que a atuação da jurisdição estatal, em tal circunstância, afigura-se precária, destinada apenas e tão somente à análise da medida de urgência apresentada, sem prorrogação, naturalmente, dessa competência provisória.
Devidamente instaurada a arbitragem, resta exaurida a jurisdição estatal, devendo os autos serem encaminhados ao Juízo arbitral competente, que, como tal, poderá manter a liminar, caso em que seu fundamento de existência passará a ser o provimento arbitral, e não mais a decisão judicial; modificá-la; ou mesmo revogá-la, a partir de sua convicção fundamentada.
Esta compreensão quanto à competência provisória do Poder Judiciário para conhecer de tutelas de urgência, enquanto, por alguma razão, não houver sido instaurada a arbitragem, passou a ser expressamente prevista no art. 22-A da Lei de Arbitragem, com redação dada pela Lei n. 13.129/2015. Antes, porém, da explicitação do legislador ordinário, a prevalecente doutrina especializada (ut Arbitragem e Tutela Provisória no Código de Processo Civil de 2015, Talamini, Eduardo, Revista de Arbitragem e Mediação, Vol. 46/2015, p. 287-313 - Jul-Set/2015) e a pacífica jurisprudência desta Corte de Justiça já se posicionavam nos termos assinalados.
A propósito:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. ARBITRAGEM. MEDIDA CAUTELAR. COMPETÊNCIA. JUÍZO ARBITRAL NÃO CONSTITUÍDO.
1. O Tribunal Arbitral é competente para processar e julgar pedido cautelar formulado pelas partes, limitando-se, porém, ao deferimento da tutela, estando impedido de dar cumprimento às medidas de natureza coercitiva, as quais, havendo resistência da parte em acolher a determinação do(s) árbitro(s), deverão ser executadas pelo Poder Judiciário, a quem se reserva o poder de imperium.
2. Na pendência da constituição do Tribunal Arbitral, admite-se que a parte se socorra do Poder Judiciário, por intermédio de medida de natureza cautelar, para assegurar o resultado útil da arbitragem.
3. Superadas as circunstâncias temporárias que justificavam a intervenção contingencial do Poder Judiciário e considerando que a celebração do compromisso arbitral implica, como regra, a derrogação da jurisdição estatal, os autos devem ser prontamente encaminhados ao juízo arbitral, para que este assuma o processamento da ação e, se for o caso, reaprecie a tutela conferida, mantendo, alterando ou revogando a respectiva decisão.
4. Em situações nas quais o juízo arbitral esteja momentaneamente impedido de se manifestar, desatende-se provisoriamente as regras de competência, submetendo-se o pedido de tutela cautelar ao juízo estatal; mas essa competência é precária e não se prorroga, subsistindo apenas para a análise do pedido liminar.
5. Recurso especial provido.
(REsp 1297974/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 12/06/2012, DJe 19/06/2012). E ainda: REsp 1325847/ap, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 05/03/2015, DJe 31/03/2015; REsp 1244401/SC, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 07/02/2017, DJe 16/02/2017; e AgRg na MC 19.226/MS, Rel. Ministro Massami Uyeda, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 21/06/2012, DJe 29/06/2012.
Na hipótese dos autos, já se pode antever que o Juízo estatal, a quem foi distribuída a subjacente medida cautelar de arresto c/c com pedido de desconsideração da personalidade jurídica, não observou tal diretriz.
Afigurou-se de todo incontroverso nos autos, porque expresso em sua exordial, que a ora recorrida Continental intentou, preventivamente, medida cautelar de arresto c/c com pedido de desconsideração da personalidade jurídica, perante o Juízo estatal, tendo o inerente propósito de salvaguardar a eficácia de futura sentença arbitral de procedência, que iria reconhecer, segundo sustentado, seu direito ao ressarcimento pelos prejuízos suportados em razão do inadimplemento, por parte da Serpal, do contrato de Prestação de Serviços e Obras de Engenharia para a realização de obras de expansão de sua fábrica de pneus em Camaçari, Bahia.
Ressai evidenciado, portanto, que, uma vez instaurado o Juízo arbitral, conforme informado pelas partes, os autos da medida de urgência deveriam ter sido simplesmente encaminhados àquele, a quem incumbiria deliberar sobre a subsistência, modificação ou revogação da decisão liminar então proferida. Afinal, a essa altura, a atuação da jurisdição estatal já se encontrava exaurida.
Ao invés de tal proceder, e, não obstante o declarado propósito de a ação cautelar ter o objetivo de salvaguardar a eficácia da arbitragem então instaurada, o juízo estatal apenas instou o Juízo arbitral para deliberar sobre a subsistência, ou não, de sua decisão liminar.
O Tribunal Arbitral, como relatado, reputou não ser competente para conhecer de tais pretensões, sob o argumento de que o decisum, em virtude da desconsideração da personalidade jurídica, repercutiu na esfera de direito de terceiros, não signatários da cláusula compromissória arbitral, sendo certo, ainda, que a matéria não foi deduzida pelas partes (e-STJ, fls. 1.875-1880).
Independentemente do acerto de tal compreensão, o Juízo estatal, como se adstrito estivesse a ela, prosseguiu na tramitação da cautelar de arresto, olvidando, a um só tempo, a derrogação de sua competência, a partir da instauração da arbitragem, assim como o declarado e inerente caráter acessório e acautelatório da medida de urgência que, como tal, não guarda em si, uma finalidade própria.
Saliente-se, a propósito, que a pretensão inserta na medida acautelatória, restrita ao bloqueio de determinados bens c/c. pedido de desconsideração da personalidade jurídica da empresa Serpal, não se confunde com aquela encerrada na ação principal (indenização pelos prejuízos percebidos em razão de alegado inadimplemento contratual), promovida perante o Tribunal Arbitral.
O bloqueio dos bens não encerra o propósito de simplesmente antecipar os efeitos de futura decisão, como se tal provimento cautelar ostentasse natureza satisfativa e definitiva (assim compreendido como aquele que, uma vez implementado, não comporta restituição ao estado anterior). Ao contrario, objetiva, sim, em caráter provisório, assegurar o resultado útil da ação principal, resguardando a eficácia de futura e eventual execução de julgado ali proferido, a evidenciar seu caráter assecuratório, unicamente.
Em face de tais características, o provimento cautelar de arresto demanda um juízo de cognição sumária, cuja subsistência dependerá necessariamente daquilo que, no processo principal, o Juízo vier a apurar e, em exauriente cognição dos elementos probatórios acostados aos autos e em observância à ampla defesa e ao contraditório, ao final, vier a decidir. Não é por outra razão, aliás, que a lei adjetiva civil de regência (CPC/1973) determinava a propositura da ação principal no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de perda de eficácia (art. 806). E, com a adaptação ao novo procedimento dado às tutelas de urgência pelo Código de Processo Civil de 2015, estabeleceu-se, no art. 308, o mesmo prazo para a veiculação do pedido principal, contado, agora, da efetivação da tutela cautelar.
Caberá, portanto, ao Juízo, no bojo do processo principal, avaliar a necessidade de subsistência da cautelar de arresto.
Na espécie, todavia, em absoluta contrariedade a tais premissas teóricas dos institutos em comento, posicionaram-se os Juízos arbitral e estatal.
Como visto, o Juízo arbitral, competente para conhecer da ação indenizatória, afirmou não ter competência para conhecer da medida cautelar de arresto c/c pedido de desconsideração da personalidade jurídica ? em que pese ser destinada a assegurar o resultado útil daquela ?, pois envolveria terceiros não signatários da cláusula compromissória e porque a questão nem sequer foi aduzida pelas partes.
Pela relevância, transcrevem-se os fundamentos adotados.
[...] O juiz togado poderá examinar o caso para conceder ou não a medida cautelar e ao árbitro caberá proferir medidas cautelares no curso da arbitragem, de acordo com o § 4º, do art. 22 da Lei de Arbitragem (Lei n. 9.307/1996), bem como ratificar, modificar ou cassar as decisões proferidas pelo Juízo Estatal em caráter de urgência.
4. Em regra, após a decisão (concessiva ou não) cessa a competência do juiz togado, cabendo aos árbitros, tão logo sejam investidos no cargo, manter, cassar ou modificar a medida concedida, nos termos já consagrados pela jurisprudência: [...]
6. Em suma, a concessão de medidas cautelares e coercitivas (incidentes ou preparatórias) é de competência exclusiva dos árbitros e eventualmente podem ser conhecidas por outros (juízes e árbitros de emergência), dentro de hipóteses limitadas, como visto acima. Todavia, os poderes dos árbitros não são amplos; sofrem limitações, qual seja: poder de efetivaras medidas concedidas em sede de tutela de urgência.
As decisões cautelares são medidas de natureza temporária, concedidas independentemente da decisão a ser proferida no mérito. Porém, no presente caso, a medida cautelar concedida não visou apenas a preservar o interesse das partes envolvidas na arbitragem (demanda de conhecimento) ou garantir a possibilidade de execução da futura sentença. Ainda, a decisão de desconsideração da personalidade jurídica da Requerida - no caso específico e na forma como pleiteada judicialmente - não é provisória, mas, sim, permanente.
8. A pretensão cautelar da Requerente não visa apenas preservar o interesse das partes envolvidas na arbitragem, pois foi dirigida a terceiros não signatários da cláusula compromissória, ou seja, pessoas físicas e jurídicas em relação às quais os árbitros não têm jurisdição. Não se trata aqui de decidir se esses terceiros são partes contratantes na arbitragem; os árbitros não foram instados a decidir questões de extensão e circulação da cláusula compromissória. Tais fatos (e os pedidos consequentes) não foram arguidos (nem os pedidos formulados) pelas partes. (e-STJ, fls. 1.875-1880).
Esta decisão, ressalta-se, não foi objeto de insurgência por parte da demandante Continental, por meio da competente ação anulatória prevista no art. 33 c/c 23, § 1º, da Lei n. 9.307/1996, embora fosse a ela extremamente gravosa. Afinal, o provimento cautelar de arresto, tal como proposto, destinado a assegurar o resultado final do processo principal arbitral, haveria de, para sua subsistência, ser confirmado por esse Juízo, sob pena de exaurir seus efeitos. De igual modo, por recair sobre bens de terceiros, o que só se viabilizaria pela pretendida desconsideração da personalidade jurídica da empresa Serpal, a correlata matéria deveria, necessariamente, ser reproduzida na ação principal, em tramitação perante o Juízo arbitral, pois, do contrário, os efeitos subjetivos da vindoura sentença arbitral não os alcançaria.
Diante da inércia da Continental, que não se insurgiu contra essa decisão arbitral, na via adequada, tampouco veiculou os fatos aduzidos na cautelar perante o Juízo arbitral, conforme ali consignado, inevitável a insubsistência da medida cautelar de arresto.
Por sua vez, o Juízo estatal, a despeito do exaurimento de sua atuação em tutela de urgência, como visto, prosseguiu no feito, ratificando a liminar em decisão final.
Este proceder, em descompasso com a lei de regência, como não poderia deixar de ser, redunda em uma situação paradoxal, a repercutir, inarredavelmente, na fase de execução do julgado proferido na arbitragem.
A propósito, consta dos autos que a ação de indenização promovida pela Continental em face da Serpal, perante o Juízo arbitral, foi, ao final, julgada procedente. É certo, ainda, que a Continental, ao promover o cumprimento da referida sentença arbitral, a pretexto da tutela de arresto obtida no presente feito, apôs no polo passivo do feito executivo Juan Quirós, bem como Augusto Quirós, Priscila Quirós, Grupime Participações Ltda., Seginus Participações Ltda., Zaurak S.A. Advento Participações S.A., NB Participações Ltda. e NTLL Participações Ltda., os quais, é certo, não integraram a arbitragem.
Veja-se que o arresto, obtido em juízo perfunctório cautelar, para sua subsistência, haveria de ser corroborado, necessariamente, pelos elementos probatórios acostados na ação principal, em cognição exauriente, observada a ampla defesa e o contraditório, o que, in casu, a toda evidência, não se verificou.
Os titulares dos bens sobre os quais recaiu o bloqueio não integraram a ação principal que tramitou perante o Juízo arbitral, não lhes sendo ofertada a possibilidade de exercer minimamente seu direito de defesa, compreendendo-se este não apenas como a possibilidade de ter ciência e de se manifestar sobre os atos processuais praticados, mas, principalmente, a de influir na convicção do julgador.
Desse modo, se os efeitos subjetivos da sentença arbitral não lhes atingem, já que não fizeram parte da arbitragem, tampouco a ela passaram a integrar, inafastável a conclusão de que o propósito acautelatório de garantir o resultado útil da demanda principal afigura-se completamente esvaziado.
A corroborar esta compreensão, oportuno mencionar que a impropriedade ora reconhecida também já foi detectada pelo Juízo no qual se processa o cumprimento da sentença arbitral, que, ao acolher as impugnações apresentadas ? embora pendente de recurso na origem ?, deixou assente:
[...] Inicialmente, observo que todos os réus da presente execução de título judicial (sentença arbitral) são considerados partes ilegítimas para figuraram no polo passivo, tendo me vista que não foram reconhecidos expressamente como devedores no título executivo.
[...]
O título judicial condenou unicamente a Serpal Engenharia e Construtora ltda. Ao pagamento de valores em favor da Continental (exequente). Os sócios da devedora - e seus familiares - não participaram do processo arbitral na fase de conhecimento e, portanto, não podem figurar como executados no cumprimento da referida sentença arbitral.
É certo que, no bojo da ação cautelar de arresto, deferiu-se medida cautelar para constritar o patrimônio dos sócios e seus familiares, reconhecendo-se a responsabilidade patrimonial secundária dos sócios pelas dívidas da empresa, em razão da possível ocorrência de fraude contra credores por desvios e confusão patrimonial entre pessoa jurídica e pessoa de seus sócios.
No entanto, esse reconhecimento se deu apenas e tão somente na medida cautelar, sem que, posteriormente, houvesse sua confirmação no processo de conhecimento (arbitragem). Na sentença arbitral não há qualquer menção ao reconhecimento da responsabilidade patrimonial secundária dos sócios da devedora. Nem tampouco tais sócios foram chamados á participar da fase de conhecimento, a fim de que pudessem constar no título executivo judicial na condição de corresponsáveis pela dívida da empresa (e-STJ, fls. 2.745-2.751)
É de se reconhecer, assim, que se encontram vigentes, ainda que indevidamente, medidas cautelares de arresto sobre bens de terceiros ? os quais não tiveram a oportunidade de integrar a lide principal ?, sem nenhuma utilidade assecuratória para o resultado final obtido no processo principal, na medida em que a sentença arbitral somente produz efeitos às partes que integraram a arbitragem ou a ela passaram a integrar.
De tudo que se expôs, sobressai, ainda, a discussão quanto à possibilidade, e mesmo necessidade, de o Juízo arbitral deliberar sobre o pedido de desconsideração da personalidade jurídica da empresa Serpal, o que acabaria por envolver terceiros não signatários do compromisso arbitral.
Importante destacar, no ponto, que o provimento cautelar de arresto sobre imóveis de titularidade de terceiros somente se afigurou possível em razão do deferimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica da empresa Serpal, a fim de tocar patrimônios não apenas do sócio-contralador, Juan Quirós, mas também de seus filhos e outras empresas que, pelo que se pode depreender, ao menos formalmente, não seriam sócios da empresa Serpal.
Esta cautelar de arresto, incidente sobre bens de terceiros e que tem o propósito de assegurar o resultado útil da arbitragem, como se vê, afigura-se indissociável, e mesmo dependente, da pretensão de desconsiderar a personalidade jurídica da empresa devedora. Logo, a tutela de urgência assecuratória, nesses termos posta (com pedidos imbricados entre si), deveria ser submetida ao Juízo arbitral, nos termos da fundamentação já expendida.
Tal conclusão ? suficiente em si para subsidiar o provimento recursal ? nem sequer seria infirmada pelo argumento de que o Tribunal Arbitral não poderia, em tese, conhecer do pedido de desconsideração da personalidade jurídica da empresa devedora, pois, implicaria envolver partes não signatárias do compromisso arbitral.
Efetivamente, o substrato da arbitragem está na autonomia de vontade das partes que, de modo consciente e voluntário, renunciam à jurisdição estatal, elegendo um terceiro, o árbitro, para solver eventuais conflitos de interesses advindos da relação contratual subjacente. O instituto da arbitragem, como método alternativo de heterocomposição dos litígios, atende detidamente ao direito fundamental da inafastabilidade da jurisdição, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, justamente porque as partes, consensual e voluntariamente, optam por submeter ao árbitro, e não ao Estado-Juiz, a solução de eventual litígio, atinente a direitos patrimoniais disponíveis.
Assim, em princípio e em regra, a cláusula de arbitragem somente pode produzir efeitos às partes que com ela formalmente consentiram. Este rigor formal, longe de encerrar formalismo exacerbado, tem, na verdade, o propósito de garantir e preservar a autonomia de vontade das partes, essência da arbitragem.
Esse consentimento à arbitragem, ao qual se busca proteger, pode apresentar-se não apenas de modo expresso, mas também na forma tácita, afigurando possível, para esse propósito, a demonstração, por diversos meios de prova, da participação e adesão da parte ao processo arbitral, especificamente na relação contratual que o originou.
Veja-se, a esse propósito, que a qualidade de contratante e de signatário do compromisso arbitral resulta, não da simples denominação que as partes a ele atribuem no documento, mas da substância das relações que emergem do contrato.
Assim, se da avença derivam diretamente para determinado sujeito direitos e obrigações por ele assentidas (no que se insere implicitamente o compromisso arbitral), ele é por natureza parte em sentido substancial, independentemente da denominação referida no documento (v.g., interveniente). Conferir tratamento adequado à matéria, assegurando a este sujeito a qualidade de parte substancial do acordo, significa, em última análise, assegurar a materialização da vontade dos concorrentes, a viabilizar a instauração da arbitragem ali ajustada, como método de solução das disputas advindas da relação contratual subjacente. Sob o aspecto processual, em se tratando de relação jurídica caracterizada pela unicidade e incindibilidade, como sói acontecer em tais circunstâncias, afigura-se inevitável a formação de litisconsórcio necessário no âmbito da arbitragem, a fim de dar concretude aos efeitos (objetivos e subjetivos) da sentença arbitral a ser ali exarada.
Com essa exegese, cita-se precedente desta Terceira Turma: REsp 1519041/RJ, desta relatoria, julgado em 01/09/2015 (DJe 11/09/2015).
No que importa à presente controvérsia, o consentimento tácito ao estabelecimento da arbitragem há de ser reconhecido, ainda, nas hipóteses em que um terceiro, utilizando-se de seu poder de controle para a realização de contrato, no qual há a estipulação de compromisso arbitral, e, em abuso da personalidade da pessoa jurídica interposta, determina tal ajuste, sem dele figurar formalmente, com o manifesto propósito de prejudicar ou outro contratante, evidenciado, por exemplo, por atos de dissipação patrimonial em favor daquele.
Em tal circunstância, se prevalecer o entendimento de que o compromisso arbitral somente produz efeitos em relação às partes que formalmente o subscreveram, o processo arbitral servirá de escudo para evitar a responsabilização do terceiro que laborou em fraude, verdadeiro responsável pelas obrigações ajustadas e inadimplidas, notadamente se o instituto da desconsideração da personalidade jurídica ? remédio jurídico idôneo para contornar esse tipo de proceder fraudulento ? não puder ser submetido ao juízo arbitral.
Veja-se que o contratante lesado não possui, formalmente, nenhuma relação jurídica com esse terceiro, circunstância que, por si só, obsta o ajuizamento direto de uma ação reparatória em seu desfavor perante a jurisdição estatal. Para atingir a responsabilização desse terceiro, afigura-se necessário, antes, promover a desconsideração da personalidade jurídica da empresa com quem formalmente estabeleceu a relação contratual. Todavia, se tal pretensão for promovida perante o Juízo estatal, a empresa demandada, com razão, poderia aventar a existência de compromisso arbitral, em que as partes relegaram ao árbitro a solução de todo e qualquer conflito advindo do contrato avençado, a ensejar a extinção do feito sem julgamento de mérito.
Como se constata, o contratante lesado deve submeter ao Juízo arbitral o pedido de desconsideração da personalidade jurídica da empresa demandada, a fim de alcançar a responsabilidade dos sócios, pelos prejuízos percebidos em virtude do inadimplemento das obrigações contratuais.
No ponto, é preciso atentar que, com exceção de questões relacionadas a direitos indisponíveis, qualquer matéria ? naturalmente, afeta à relação contratual estabelecida entre as partes ?, pode ser submetida à análise do Tribunal Arbitral, que a decidirá em substituição às partes, com o atributo de definitividade. Veja-se, portanto, que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica não refoge a essa regra, a pretexto de atingir terceiros não signatários do compromisso arbitral.
É, portanto, no contexto de abuso da personalidade jurídica, fraude e má-fé da parte formalmente contratante, que se afiguraria possível ao Juízo arbitral ? desde que provocado para tanto, após cuidadosa análise da pertinência das correlatas alegações, observado o contraditório, com exauriente instrução probatória (tal como se daria perante a jurisdição estatal) ?, deliberar pela existência de consentimento implícito ao compromisso arbitral por parte desse terceiro, que, aí sim, sofreria os efeitos subjetivos de futura sentença arbitral.
Afinal, o consentimento formal exigido na arbitragem, que tem por propósito justamente preservar a autonomia dos contratantes (essência do instituto), não pode ser utilizado para camuflar a real vontade da parte, por ela própria dissimulada deliberadamente.
Com esse norte interpretativo, destaca-se a especializada doutrina de Arnoldo Wald:
Não há dúvida que a arbitragem pressupõe, sempre, o acordo de vontade das partes, sendo necessariamente consensual e não podendo ser imposta por uma das partes à outra nem mesmo, em tese, pelo legislador. Por outro lado, a desconsideração poderia ensejar a sujeição ao processo arbitral de terceiro, que nele não foi parte e que não aceitou expressamente a cláusula compromissória.
Pode parecer, pois, haver uma incompatibilidade entre a aplicação da teoria da desconsideração e a arbitragem, tendo o assunto sido pouco examinado, até agora, pela doutrina, não qual se vislumbram até certas posições antagônicas.
Na realidade, não existe incompatibilidade, como em seguida veremos, mas não há dúvida que o árbitro, como o juiz, só excepcionalmente deve fazer incidir a teoria da desconsideração, pelo caráter da mesma, que sempre pressupõe um abuso ou uma fraude, devendo estar caracterizada a má-fé da empresa, ou da pessoa que passa a ser abrangida na condenação, sem ter sido parte ostensiva e direta na arbitragem ou no negócio jurídico que ensejou o litígio.
É preciso, inicialmente, lembrar que, conforme já se tornou manso e pacífico, tanto na jurisprudência como na doutrina, a aceitação da arbitragem pelas partes costuma ser expressa, mas também pode ser tácita, comprovando-se por numerosas formas, desde a participação efetiva no processo arbitral ou no negócio que deu ensejo ao mesmo, até em virtude de remissão ao regime estabelecido em outro contrato, ou da aceitação das normas contidas no estatuto ou contrato social da empresa, ou ainda da adesão de uma entidade nacional ou internacional que estabelece princípios para determinadas transações, como a Interational Cotton Association, ou para solução de litígios entre determinadas pessoas, em certos casos, como ocorre no novo mercado da Bovespa.
Mais polêmica é a aplicação da cláusula compromissória quando se trata de terceiro que, de má-fé, com abuso de direito ou fraude, utilizou o seu poder de controle para realizar o contrato que ensejou o litígio, ou cedeu o mesmo a terceiro para que o demandado na arbitragem fosse uma espécie de 'laranja' insolvente, permitindo que o verdadeiro contratante (do ponto de vista econômico) deixasse de ser responsável. Nestes casos é que se discute a possibilidade de aplicação da desconsideração, com o caráter de sanção, Trata-se de, havendo má-fé, contornar o princípio essencial e básico no direito comercial da limitação da responsabilidade da empresa para buscar o verdadeiro responsável.
[...]
A crescente sofisticação da estruturas societárias, a criação de novos tipos de relações entre empresas e a necessidade de preservar o princípio da limitação da responsabilidade, para o desenvolvimento do comércio, fizeram com que a existência de grupo societário não ensejasse necessariamente a desconsideração da empresa contratante ou demandada, para se considerar, como parte do negócio, à sua controladora, ou outras empresas do mesmo grupo. Na realidade, o grupo de sociedades não significa necessariamente que tenha havido efetiva confusão patrimonial no plano jurídico, podendo, em tese, uma empresa do grupo tornar-se insolvente sem que tal fato importe em arrastar o grupo, ensejando a responsabilidade do mesmo. Cabe ao juiz, ou ao árbitro, verificar cada caso concreto e tanto a legislação civil como a bancária estabelecem, no caso, um poder de autoridade, para, apreciando cada situação, aplicar ou não a desconsideração. [...]
Não nos parece haver grande diferença entre a posição do juiz e a do árbitro, pois ambos aplicam a mesma lei e o consensualismo que se exige na arbitragem não pode ser um meio de fraudar a vontade real e efetiva das partes. No momento em que se admitiu a aceitação tácita da arbitragem é preciso que, no caso de fraude, ou má-fé, o processo seja contra o devedor real e não somente aquele que simulou ou que ocupou indevidamente o seu lugar para frustrar os direitos da outra parte. (Wald, Arnoldo. A Desconsideração na Arbitragem Societária. Revista de Arbitragem e Mediação. Vol. 44/2015. p. 49-64. Jan/Mar - 2015)
Portanto, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, ainda que veiculado inicialmente perante o Juízo estatal, a fim subsidiar a cautelar de arresto incidente sobre bens de terceiros, é também matéria de competência do Juízo arbitral e, como tal, deveria ser necessariamente a ele submetido a julgamento em momento subsequente, providência não levada a efeito pela recorrida, como seria de rigor.
Diante de tal desfecho, prejudicadas as questão remanescentes suscitadas no presente recurso especial.
Por fim, sem descurar da gravidade dos fatos alegados e reconhecidos, em caráter perfunctório, pelo Juízo estatal, é preciso tecer consideração atinente à notícia constante dos autos, relacionada ao superveniente decreto falencial da Serpal.
Se houve diluição fraudulenta de patrimônio, eventual pretensão de desconsideração da personalidade jurídica para atingir bens de sócios ou como, in casu, também de terceiros, estranhos, pelo que se pode depreender, do quadro societário da empresa falida, há de ser efetivada, a requerimento dos interessados, no bojo do concurso universal, de modo a favorecer todos os credores, na ordem dos respectivos créditos, segundo a preferência e privilégios que estes, porventura, guardem em si, e não apenas a um credor específico.
Em arremate, na esteira dos fundamentos delineados, dou provimento ao recurso especial para, diante do exaurimento da atuação da jurisdição estatal e da própria decadência da medida cautelar, extinguir, sem julgamento de mérito, a subjacente ação cautelar de arresto c/c pedido de desconsideração da personalidade jurídica, afastando-se a multa imposta, prevista no parágrafo único do art. 538 do CPC/1973, com inversão dos ônus sucumbenciais.
É o voto.