RECURSO ESPECIAL Nº 803.331 - SP (2005/0204950-9)
RECORRENTE : MASAYOSHI KAKESHITA
ADVOGADO : ANTÔNIO LUIZ LIMA DO AMARAL FURLAN E OUTROS
RECORRIDO : FAZENDA NACIONAL
PROCURADOR : HUMBERTO GOUVEIA E OUTROS
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKI:
Trata-se de recurso especial interposto em face de acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que, em demanda visando à devolução de valores recolhidos a título de empréstimo compulsório incidente sobre a aquisição de veículos automotores e combustíveis, nos termos do Decreto-Lei 2.288/86, negou provimento à apelação da ora recorrida e deu parcial provimento à remessa oficial, reformando em parte a sentença de procedência, decidindo, no que interessa ao presente recurso, que "na espécie, consumou-se a prescrição, relativamente ao empréstimo compulsório incidente sobre à aquisição de veículo, bem como quanto às parcelas de 1986 e 1987 concernentes à aquisição de combustível, vez que proposta a ação em período posterior ao prazo qüinqüenal, contado a partir da data em que era devida a restituição administrativa. Afastada a prescrição para os demais períodos, nos termos da jurisprudência da Turma." (fls. 70).
Foram rejeitados os embargos de declaração opostos pela ora recorrente, nos quais se suscitou a manifestação do Tribunal de origem sobre o teor do art. 174 do CTN.
No recurso especial, fundado nas alíneas a e c do permissivo constitucional, a recorrente aponta, além de divergência jurisprudencial, violação aos seguintes dispositivos: (a) art. 150 do CTN, porquanto não foi considerado o prazo para homologação previsto em lei complementar, (b) art. 174 do CTN, pois a constituição definitiva do crédito tributário só se deu com a homologação, (c) arts. 165 e 168 do CTN, porque o dies a quo do prazo prescricional qüinqüenal é a data da homologação, razão pela qual deve ser afastada a prescrição e (d) arts. 2º, 96 e 97 do CTN, ao argumento de que as disposições do Decreto-lei 2.288/86 não podem se sobrepor ao previsto em lei complementar. Pede a reforma do acórdão recorrido, restaurando-se a sentença, inclusive quanto aos honorários advocatícios.
Em contra-razões, a recorrida aduz que a matéria recursal não foi prequestionada e, quanto ao mérito, pugna pelo não provimento do especial.
É o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 803.331 - SP (2005/0204950-9)
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 282/STF. TRIBUTÁRIO. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO. COMBUSTÍVEIS. TRIBUTO SUJEITO A LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. PRESCRIÇÃO. ORIENTAÇÃO FIRMADA PELA 1ª SEÇÃO DO STJ, NA APRECIAÇÃO DO ERESP 435.835/SC. LC 118/2005: NATUREZA MODIFICATIVA (E NÃO SIMPLESMENTE INTERPRETATIVA) DO SEU ARTIGO 3º. INCONSTITUCIONALIDADE DO SEU ART. 4º, NA PARTE QUE DETERMINA A APLICAÇÃO RETROATIVA. ENTENDIMENTO CONSIGNADO NO VOTO DO ERESP 327.043/DF.
1. A ausência de debate, na instância recorrida, sobre o dispositivo legal cuja violação se alega no recurso especial atrai, por analogia, a incidência da Súmula 282 do STF.
2. A 1ª Seção do STJ, no julgamento do ERESP 435.835/SC, Rel. p/ o acórdão Min. José Delgado, sessão de 24.03.2004, consagrou o entendimento segundo o qual o prazo prescricional para pleitear a restituição de tributos sujeitos a lançamento por homologação é de cinco anos, contados da data da homologação do lançamento, que, se for tácita, ocorre após cinco anos da realização do fato gerador ? sendo irrelevante, para fins de cômputo do prazo prescricional, a causa do indébito. Adota-se o entendimento firmado pela Seção, com ressalva do ponto de vista pessoal, no sentido da subordinação do termo a quo do prazo ao universal princípio da actio nata (voto-vista proferido nos autos do ERESP 423.994/SC, 1ª Seção, Min. Peçanha Martins, sessão de 08.10.2003).
3. O art. 3º da LC 118/2005, a pretexto de interpretar os arts. 150, § 1º, 160, I, do CTN, conferiu-lhes, na verdade, um sentido e um alcance diferente daquele dado pelo Judiciário. Ainda que defensável a ?interpretação? dada, não há como negar que a Lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições interpretadas um dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ, intérprete e guardião da legislação federal. Portanto, o art. 3º da LC 118/2005 só pode ter eficácia prospectiva, incidindo apenas sobre situações que venham a ocorrer a partir da sua vigência.
4. O artigo 4º, segunda parte, da LC 118/2005, que determina a aplicação retroativa do seu art. 3º, para alcançar inclusive fatos passados, ofende o princípio constitucional da autonomia e independência dos poderes (CF, art. 2º) e o da garantia do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI). Todavia, no julgamento do ERESP 327.043/DF, a 1ª Seção entendeu que o dispositivo é aplicável às ações propostas a partir da data da sua vigência, com o que ficava dispensada a declaração de sua inconstitucionalidade. Ressalva, no particular, do ponto de vista pessoal do relator, no sentido de que cumpre ao órgão fracionário do STJ suscitar o incidente de inconstitucionalidade perante a Corte Especial, nos termos do art. 97 da CF.
5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKI (Relator):
1. Ao contrário do afirmado pela recorrida em contra-razões, a matéria recursal, no que se refere à prescrição, foi devidamente prequestionada pelo Tribunal de origem que, aliás, fez menção explícita aos arts. 150, 165 e 168 do CTN, fazendo também, após provocação mediante embargos declaratórios, longo arrazoado sobre o teor do art. 174 do CTN. Portanto, quanto a tais dispositivos, não há que se falar em ausência de prequestionamento.
2. Por sua vez, não houve prequestionamento dos arts. 2º, 96 e 97 do CTN, apontados para fundamentar a alegação de que as disposições do Decreto-lei 2.288/86 não podem se sobrepor às previsões do CTN, sob pena de afronta ao princípio da hierarquia das leis. Frise-se ainda que tais artigos não foram objeto de embargos de declaração. Assim, à falta do indispensável requisito do prequestionamento, o recurso não pode ser conhecido quanto ao ponto, incidindo, na hipótese, o óbice previsto na Súmula 282/STF.
3. No que concerne à controvérsia atinente ao prazo prescricional, a 1ª Seção do STJ, na apreciação do ERESP 435.835/SC, Rel. p/ o acórdão Min. José Delgado, julgado em 24.03.2004, revendo a orientação até então dominante, firmou entendimento no sentido de que o prazo prescricional para o ajuizamento de ação de repetição de indébito, para os tributos sujeitos a lançamento por homologação, é de cinco anos, tendo como marco inicial a data da homologação do lançamento, que, sendo tácita, ocorre no prazo de cinco anos do fato gerador. Considerou-se ser irrelevante, para efeito da contagem do prazo prescricional, a causa do recolhimento indevido (v.g., pagamento a maior ou declaração de inconstitucionalidade do tributo pelo Supremo), eliminando-se a anterior distinção entre repetição de tributos cuja cobrança foi declarada inconstitucional em controle concentrado e em controle difuso, com ou sem edição de resolução pelo Senado Federal, mediante a adoção da regra geral dos "cinco mais cinco" para a totalidade dos casos. Assim firmada a orientação, é de ser adotada no presente caso, com ressalva do ponto de vista pessoal, no sentido da subordinação do termo a quo do prazo ao universal princípio da actio nata (voto-vista proferido nos autos do ERESP 423.994/SC, 1ª Seção, Min. Peçanha Martins, sessão de 08.10.2003).
Não foi esta a orientação adotada pelo acórdão recorrido que deve, portanto, ser reformado. Assim, ajuizada a ação em 11.06.1996, devem ser considerados prescritos os créditos cujos fatos geradores ocorreram antes de 11.06.1986. Portanto, ocorrido o fato gerador em 12/86 (fls. 9), não há que se falar em prescrição.
Com relação à recente alteração no CTN , promovida pela LC 118/2005, proferi voto, no ERESP 327.043/DF (Rel. Min. João Otávio Noronha), julgado em 27.04.2005, nos seguintes termos:
"1. Questiona-se, aqui, (a) a natureza ? se interpretativa ou não - do art. 3º da LC 118/2005, segundo o qual, para efeito de contagem do prazo para a repetição do indébito, deve ser considerado que ?a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado?, bem como (b) a legitimidade da art. 4º, segunda parte, da mesma Lei, que determina a aplicação retroativa daquele artigo 3º, tal como prevê o art. 106, I, do CTN.
2. Em nosso sistema constitucional, as funções legislativa e jurisdicional estão atribuídas a Poderes distintos, autônomos e independentes entre si (CF, art; 2º). Legislar, função essencialmente conferida ao Parlamento, é criar os preceitos normativos, é impor modificação no plano do direito positivo. Já a função jurisdicional - de assegurar o cumprimento da norma, que pressupõe também a de interpretá-la previamente -, é atribuída ao Poder Judiciário. A atividade legislativa está submetida à cláusula constitucional do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (art. 5º, XXXVI), razão pela qual as modificações do ordenamento jurídico, impostas pelo Legislativo, têm, em princípio, apenas eficácia prospectiva, não podendo ser aplicadas retroativamente. A função jurisdicional, ao contrário, atua, em regra, sobre fatos já ocorridos ou em via de ocorrer. Só excepcionalmente pode o Legislativo atuar sobre o passado, assim como só excepcionalmente pode Judiciário produzir sentenças com efeitos normativos futuros.
Todos sabemos que essa bipartição não tem caráter absoluto, comportando algumas exceções. Mas a regra geral é essa: o Legislativo produz o enunciado normativo, que vai ter aplicação para o futuro; produzido o enunciado, ele assume vida própria, cabendo ao Judiciário, daí em diante, zelar pelo cumprimento da norma que dele decorre, o que comporta a função de, mediante interpretação, descobri-la e aplicá-la aos casos concretos. São atividades complementares: como dizia Calamandrei, ?O Estado defende com a jurisdição sua autoridade de legislador? (CALAMANDREI, Piero. Instituciones de Derecho Procesal Civil, tradução de Santiago Sentis Melendo, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-América, 1986, vol. I, p. 175)
3. Interpretar um enunciado normativo é buscar o seu sentido, o seu alcance, o seu significado. ?A interpretação?, escreveu Eros Grau, ?é um processo intelectivo através do qual, partindo de fórmulas lingüísticas contidas nos textos, enunciados, preceitos, disposições, alcançamos a determinação de um conteúdo normativo. (...) Interpretar é atribuir um significado a um ou vários símbolos lingüísticos escritos em um enunciado normativo. O produto do ato de interpretar, portanto, é o significado atribuído ao enunciado ou texto (preceito, disposição)? (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2ª ed., SP, Malheiros, 2003, p. 78). E observa, mais adiante: ?As disposições são dotadas de um significado, a elas atribuído pelos que operaram no interior do procedimento normativo, significado que a elas desejaram imprimir. Sucede que as disposições devem exprimir um significado para aqueles aos quais são endereçadas. Daí a necessidade de bem distinguirmos os significados imprimidos às disposições (enunciados, textos), por quem as elabora e os significados expressados pelas normas (significados que apenas são revelados através e mediante a interpretação, na medida em que as disposições são transformadas em normas)? (op. cit., p.79).
Prossegue o autor: ?A interpretação, destarte, é meio de expressão dos conteúdos normativos das disposições, meio através do qual pesquisamos as normas contidas nas disposições. Do que diremos ser ? a interpretação ? uma atividade que se presta a transformar disposições (textos, enunciados) em normas. Observa Celso Antônio Bandeira de Mello (...) que '(...) é a interpretação que especifica o conteúdo da norma. Já houve quem dissesse, em frase admirável, que o que se aplica não é a norma, mas a interpretação que dela se faz. Talvez se pudesse dizer: o que se aplica, sim, é a própria norma, porque o conteúdo dela é pura e simplesmente o que resulta da interpretação. De resto, Kelsen já ensinara que a norma é uma moldura. Deveras, quem outorga, afinal, o conteúdo específico é o intérprete, (...)'. As normas, portanto, resultam da interpretação. E o ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações, isto é, conjunto de normas. O conjunto das disposições (textos, enunciados) é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais. O significado (isto é, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete. (...) As disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; somente passam a dizer algo quando efetivamente convertidos em normas (isto é, quando ? através e mediante a interpretação ? são transformados em normas). Por isso as normas resultam da interpretação, e podemos dizer que elas, enquanto disposições, nada dizem ? elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem (...)? (op. cit., p. 80).
4. Sendo assim e considerando que a atividade de interpretar os enunciados normativos, produzidos pelo legislador, está cometida constitucionalmente ao Poder Judiciário, seu intérprete oficial, podemos afirmar, parafraseando a doutrina, que o conteúdo da norma não é, necessariamente, aquele sugerido pela doutrina, ou pelos juristas ou advogados, e nem mesmo o que foi imaginado ou querido em seu processo de formação pelo legislador; o conteúdo da norma é aquele, e tão somente aquele, que o Poder Judiciário diz que é. Mais especificamente, podemos dizer, como se diz dos enunciados constitucionais (= a Constituição é aquilo que o STF, seu intérprete e guardião, diz que é), que as leis federais são aquilo que o STJ, seu guardião e intérprete constitucional, diz que são.
5. Nesse contexto, a edição, pelo legislador, de lei interpretativa, com efeitos retroativos, somente é concebível em caráter de absoluta excepcionalidade, sob pena de atentar contra os dois postulados constitucionais já referidos: o da autonomia e independência dos Poderes (art. 2º, da CF) e o do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (art. 5º, XXXVI, da CF). Lei interpretativa retroativa só pode ser considerada legítima quando se limite a simplesmente reproduzir (= produzir de novo), ainda que com outro enunciado, o conteúdo normativo interpretado, sem modificar ou limitar o seu sentido ou o seu alcance. Isso, bem se percebe, é hipótese de difícil concreção, quase inconcebível, a não ser no plano teórico, ainda mais quando se considera que o conteúdo de um enunciado normativo reclama, em geral, interpretação sistemática, não podendo ser definido isoladamente. ?Interpretar uma norma?, escreveu Juarez Freitas, ?é interpretar um sistema inteiro: qualquer exegese comete, direta ou obliquamente, uma aplicação da totalidade do Direito? (FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito, SP, Malheiros, 1995, p. 47). Ora, lei que simplesmente reproduz a já existente, ainda que com outras palavras, seria supérflua; e lei que não é assim, é lei que inova e, portanto, não pode ser considerada interpretativa e nem, conseqüentemente, ser aplicada com efeitos retroativos.
6. Ainda que se admita a possibilidade de edição de lei interpretativa, como prevê o art. 106, I, do CTN, mas considerando o que antes se disse sobre o processo interpretativo e seus agentes oficiais (= a norma é aquilo que o Judiciário diz que é), evidencia-se como hipótese paradigmática de lei inovadora (e não simplesmente interpretativa) aquela que, a pretexto de interpretar, confere à norma interpretada um conteúdo ou um sentido diferente daquele que lhe foi atribuído pelo Judiciário ou que limita o seu alcance ou lhe retira um dos seus sentidos possíveis.
É o que ocorre no caso em exame. Com efeito, sobre o tema relacionado com a prescrição da ação de repetição de indébito tributário, a jurisprudência do STJ (1ª Seção) é no sentido de que, em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o prazo de cinco anos, previsto no art. 168 do CTN, tem início, não na data do recolhimento do tributo indevido, e sim na data da homologação ? expressa ou tácita - do lançamento. Segundo entende o Tribunal, para que o crédito se considere extinto, não basta o pagamento: é indispensável a homologação do lançamento, hipótese de extinção albergada pelo art. 156, VII, do CTN. Assim, somente a partir dessa homologação é que teria início o prazo previsto no art. 168, I. E, não havendo homologação expressa, o prazo para a repetição do indébito acaba sendo, na verdade, de dez anos a contar do fato gerador.
Essa jurisprudência certamente não tem a adesão uniforme da doutrina e nem de todos os juízes. Em muitos casos, eu mesmo já manifestei minha discordância pessoal em relação a ela, como, v;g., no voto vista proferido no ERESP 423.994, 1ª Seção, rel. Min. Peçanha Martins, onde apontei sua fragilidade por desconsiderar inteiramente ?um princípio universal em matéria de prescrição: o princípio da actio nata, segundo o qual a prescrição se inicia com o nascimento da pretensão ou da ação (Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Bookseller Editora, 2.000, p. 332)?. ?Realmente?, sustentei, ?ocorrendo o pagamento indevido, nasce desde logo o direito a haver a repetição do respectivo valor, e, se for o caso, a pretensão e a correspondente ação para a sua tutela jurisdicional. Direito, pretensão e ação são incondicionados, não estando subordinados a qualquer ato do Fisco ou a decurso de tempo. Mesmo em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o direito, a pretensão e a ação nascem tão pronto ocorra o fato objetivo do pagamento indevido. Sob este aspecto, pareceria mais adequado ao princípio da actio nata aplicar, inclusive em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o disposto art. 168, I, combinado com o art. 156, I, do CTN, ou seja: o prazo prescricional (ou decadencial) para a repetição do indébito conta-se da extinção do crédito (art. 168, I), que, por sua vez, ocorre com o pagamento (art. 156, I). Observe-se que, mesmo em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o pagamento antecipado também extingue o crédito, ainda que sob condição resolutória (CTN, 150, § 1º).?
Todavia, inobstante as reservas e críticas que possa merecer, o certo é que a jurisprudência do STJ, em inúmeros precedentes, definiu o conteúdo dos enunciados normativos em determinado sentido, e, bem ou mal, a interpretação que lhes conferiu o STJ é a interpretação legítima, porque emanada do órgão constitucionalmente competente para fazê-lo. Ora, o art. 3º da LC 118/2005, a pretexto de interpretar esses mesmos enunciados, conferiu-lhes, na verdade, um sentido e um alcance diferente daquele dado pelo Judiciário. Ainda que defensável a ?interpretação? dada, não há como negar que a lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições normativas interpretadas um dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ, intérprete e guardião da legislação federal. Se, como se disse, a norma é aquilo que o Judiciário, como seu intérprete, diz que é, não pode ser considerada simplesmente interpretativa a lei que dá a ela outro significado. Em outras palavras: não pode ser considerada interpretativa a lei que tem o evidente objetivo de modificar a jurisprudência dos Tribunais. Somente a jurisprudência é que pode, legitimamente, alterar a jurisprudência.
7. Não se nega ao Legislativo o poder de alterar a norma (e, portanto, se for o caso, também a interpretação formada em relação a ela). Pode, sim, fazê-lo, mas não com efeitos retroativos. Admitir a aplicação do art. 3º da LC 118/2005, sobre os fatos passados, nomeadamente os que são objeto de demandas em juízo, seria consagrar verdadeira invasão, pelo Legislativo, da função jurisdicional, comprometendo a autonomia e a independência do Poder Judiciário. Significaria, ademais, consagrar ofensa à cláusula constitucional que assegura, em face da lei nova, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Portanto, o referido dispositivo, por ser inovador no plano das normas, somente pode ser aplicado a situações que venham a ocorrer a partir da vigência da Lei Complementar 118/2005, que ocorrerá 120 dias após a sua publicação (art. 4º), ou seja, no dia 09 de junho de 2005.
Tratando-se de norma que reduz prazo de prescrição, cumpre observar, na sua aplicação, a regra clássica de direito intertemporal, afirmada na doutrina e na jurisprudência em situações dessa natureza: o termo inicial do novo prazo será o da data da vigência da lei que o estabelece, salvo se a prescrição (ou, se for o caso, a decadência), iniciada na vigência da lei antiga, vier a se completar, segundo a lei antiga, em menos tempo. São precedentes do STF nesse sentido:
"Prescrição Extintiva. Lei nova que lhe reduz prazo. Aplica-se à prescrição em curso, mas contando-se o novo prazo a partir da nova lei. Só se aplicará a lei antiga, se o seu prazo se consumar antes que se complete o prazo maior da lei nova, contado da vigência desta, pois seria absurdo que, visando a lei nova reduzir o prazo, chegasse a resultado oposto, de ampliá-lo" (RE 37.223, Min. Luiz Gallotti, julgado em 10.07.58).
"Ação Rescisória. Decadência. Direito Intertemporal. Se o restante do prazo de decadência fixado na lei anterior for superior ao novo prazo estabelecido pela lei nova, despreza-se o período já transcorrido, para levar-se em conta, exclusivamente, o prazo da lei nova, a partir do início da sua vigência" (AR 905/DF, Min. Moreira Alves, DJ de 28.04.78).
No mesmo sentido: RE 93.110/RJ, Min. Xavier de Albuquerque, julgado em 05.11.80; AR 1.025-6/PR, Min. Xavier de Albuquerque, DJ de 13.03.81.
É o que se colhe, também, de abalizada doutrina, como, v.g., a de Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, 1998, Tomo VI, p. 359), Barbosa Moreira (Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, 1976, volume V, p. 205-207) e Galeno Lacerda, este com a seguinte e didática lição sobre situação análoga (redução do prazo da ação rescisória, operada pelo CPC de 1973):
?A mais notável redução de prazo operada pelo Código vigente incidiu sobre o de propositura da ação rescisória. O velho e mal situado prazo de cinco anos prescrito pelo Código Civil (art. 178, § 10, VIII) foi diminuído drasticamente para dois anos (art. 495). Surge, aqui, interessante problema de direito transitório, quanto à situação dos prazos em curso pelo direito anterior. A regra para os prazos diminuídos é inversa da vigorante para os dilatados. Nestes, como vimos, soma-se o período da lei antiga ao saldo, ampliado, pela lei nova. Quando se trata de redução, porém, não se podem misturar períodos regidos por leis diferentes: ou se conta o prazo, todo ele pela lei antiga, ou todo, pela regra nova, a partir, porém, da vigência desta. Qual o critério para identificar, no caso concreto, a orientação a seguir? A resposta é simples. Basta que se verifique qual o saldo a fluir pela lei antiga. Se for inferior à totalidade do prazo da nova lei, continua-se a contar dito saldo pela regra antiga. Se superior, despreza-se o período já decorrido, para computar-se, exclusivamente, o prazo da lei nova, na sua totalidade, a partir da entrada em vigor desta. Assim, por exemplo, no que concerne à ação rescisória, se já decorreram quatro anos pela lei antiga, só ela é que há de vigorar: o saldo de um ano, porque menor ao prazo do novo preceito construa a fluir, mesmo sob a vigência deste. Se, porém, passou-se, apenas, um ano sob o direito revogado, o saldo de quatro, quando da entrada em vigor da regra nova, é superior ao prazo por esta determinado. Por este motivo, a norma de aplicação imediata exige que o cômputo se proceda, exclusivamente, pela lei nova, a partir, evidentemente, de sua entrada em vigor, isto é, os dois anos deverão contar-se a partir de 1º de janeiro de 1974. O termo inicial não poderia ser, nesta hipótese, o do trânsito em julgado da sentença, operado sob lei antiga, porque haveria, então, condenável retroatividade" (O Novo Direito Processual Civil e os Feitos Pendentes, Forense, 1974, pp. 100-101).
Câmara Leal tem pensamento semelhante:
"Estabelecendo a nova lei um prazo mais curto de prescrição, esse começará a correr da data da nova lei, salvo se a prescrição iniciada na vigência da lei antiga viesse a se completar em menos tempo, segundo essa lei, que, nesse caso, continuaria a regê-la, relativamente ao prazo" (Da Prescrição e da Decadência, Forense, 1978, p.90).
8. Ocorre que o art. 4º da Lei Complementar 118/2005, em sua segunda parte, determina, de modo expresso, que, relativamente ao seu art. 3º, seja observado ?o disposto no art. 106, I, da Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 ? Código Tributário Nacional?, vale dizer, que seja aplicada inclusive aos atos ou fatos pretéritos. Ora, conforme antes demonstrado, a aplicação retroativa do dispositivo importa, nesse caso, ofensa à Constituição, nomeadamente ao seu art. 2º (que consagra a autonomia e independência do Poder Judiciário em relação ao Poder Legislativo) e ao inciso XXXVI do art. 5º, que resguarda, da aplicação da lei nova, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Assim, fica evidenciada a inconstitucionalidade do dispositivo, cumprindo observar, em relação a ele, o disposto no art. 97 da Constituição, instalando-se o devido incidente de inconstitucionalidade . Não basta, para contornar o incidente, simplesmente deixar de aplicar o dispositivo inconstitucional. Ao Judiciário, que está submetido à lei, somente é dado deixar de aplicá-la quando ela for incompatível com a Constituição, o que só pode ser reconhecido e declarado pela maioria absoluta dos seus membros ou dos membros do órgão especial. Bem a propósito, eis a orientação do STF a respeito, em situação absolutamente análoga:
?A declaração de inconstitucionalidade de norma incidenter tantum, e, portanto, por meio do controle difuso de constitucionalidade, é o pressuposto para o juiz ou o Tribunal, no caso concreto, afastar a aplicação da norma tida por inconstitucional. Por isso, não se pode pretender, como o faz o acórdão recorrido, que não há declaração de inconstitucionalidade de uma norma jurídica incidenter tantum quando o acórdão não a declara inconstitucional, mas afasta a sua aplicação, porque tida como inconstitucional. Ora, em se tratando de inconstitucionalidade de norma jurídica a ser declarada em controle difuso por Tribunal, só pode declará-la, em face do disposto no artigo 97 da Constituição, o Plenário dele ou seu Órgão Especial, onde este houver, pelo voto da maioria absoluta dos membros de um ou de outro? (STF, RE 179.170, 1ª Turma, Min. Moreira Alves, DJ de 30.10.98).
9. Ante o exposto, acompanho o entendimento do Ministro relator, mas proponho seja suscitado incidente de inconstitucionalidade da expressão ?observado, quanto ao art. 3º, o disposto no art. 106, I, da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 ? Código Tributário Nacional?, constante do art. 4º, segunda parte, da Lei Complementar 118/2005, submetendo-se a matéria à consideração do órgão especial, na forma dos arts. 199 e 200 do Regimento Interno. É o voto".
Quanto à inconstitucionalidade do art. 4º da LC 118/05, a 1ª Seção, no julgamento do referido ERESP 327.043/DF, entendeu desnecessária a instalação do incidente previsto no art. 97 da CF, ao entendimento de que o dispositivo não tem aplicação em relação às ações propostas até a data de entrada em vigor da Lei Complementar, aplicando-se, todavia, às ações ajuizadas a partir daquela data.
Invoco os mesmos fundamentos para o caso em exame, ressalvando meu ponto de vista quanto ao incidente de inconstitucionalidade.
4. Diante do exposto, conheço parcialmente do recurso especial para, nesta parte, dar-lhe provimento, afastando a prescrição, nos termos da fundamentação, restabelecidos os ônus sucumbenciais fixados na sentença (fls. 46). É o voto.