MANDADO DE INJUNÇÃO Nº 249 - DF (2018/0093271-8)
RELATOR : MINISTRO HUMBERTO MARTINS
IMPETRANTE : OUMAR SYLLA
ADVOGADOS : MAURÍCIO SOLANO DOS SANTOS - SC017425
ROSE MARIA DOS PASSOS - SC036876
EDUARDO BALDISSERA CARVALHO SALLES - SC041629
IMPETRADO : MINISTRO DA JUSTIÇA
IMPETRADO : MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
IMPETRADO : MINISTRO DO TRABALHO
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator):
Cuida-se de mandado de injunção impetrado por OUMAR SYLLA contra ato alegadamente omissivo do MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA, DO MINISTRO DE ESTADO DAS RELAÇÕES EXTERIORES e do MINISTRO DE ESTADO DO TRABALHO.
Na petição inicial, em apertada síntese, o impetrante descreve que possui nacionalidade senegalesa e pretende requerer residência no Brasil com base no alínea "c" do inciso I do art. 30 da Lei n. 13.445/2017.
Descreve que se trata da hipótese de acolhida humanitária.
Alega que esse direito ao pleito, previsto em lei, está sendo obstado pela inexistência do regulamento, previsto no parágrafo único do art. 145 do Decreto n. 9.119/2017.
Informa, ainda, que requereu informações aos três ministérios e que o Ministério da Justiça teria informado que o desejado regulamento estaria em fase de produção.
Defende a aplicabilidade do mandado de injunção, no caso concreto, com fulcro na Lei n. 13.300/2016.
Pede a ordem para que seja determinada a expedição da portaria ou de ato regulamentar congênere e, assim, permitir o exercício do seu direito ao pleito de acolhida humanitária (fls. 1-9, e-STJ).
Foi deferida a gratuidade de justiça (fl. 68, e-STJ).
Não havia pedido de liminar e, portanto, foi demandada a produção de informações pelas autoridades impetradas (fls. 74-75, e-STJ).
O Ministro de Estado da Justiça prestou informações (fls. 192-197, e-STJ). Alega que não haveria interesse de agir, pois o impetrante não estaria a sofrer restrição de direito previsto constitucionalmente em razão da ausência de ato legal ou infra. Frisa que o impetrante possui processo com pedido de reconhecimento da condição de refugiado, com fulcro na Lei n. 9.474/1997. Afirma que a sua situação é regular e que ele possui acesso a todos os documentos necessários para viver e trabalhar no Brasil. Alega, ainda, que inexiste falar em direito à legislação em razão da edição da Portaria Interministerial n. 10, de 6/4/2018.
O Ministro de Estado do Trabalho e Emprego prestou informações (fls. 221-223, e-STJ). Alega que o ato alegadamente inexistente foi editado. Logo, não haveria falar em violação passível de combate por mandado de injunção.
O Ministério Público Federal opina em prol da extinção do feito sem a apreciação do mérito nos termos da seguinte ementa (fl. 226, e-STJ):
"Mandado de Injunção. Refugiado. Autorização para residência no País. Alegação de mora em regulamentar o artigo 145 do Decreto nº 9.119/2017, que prevê a autorização de residência para fins de acolhida humanitária. O mandado de injunção será concedido sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Privação de exercício de direitos previstos na Constituição Federal. Não demonstrada. Refugiado em condição migratória regular. Pleito de autorização de residência com fundamento em acolhida humanitária. Impetrante refugiado. Artigo 145 do Decreto nº 9.199/2017 aplicável às hipóteses de acolhimento humanitário. Carência de ação por falta de interesse de agir. Parecer pela extinção do processo sem julgamento do mérito."
É, no essencial, o relatório.
MANDADO DE INJUNÇÃO Nº 249 - DF (2018/0093271-8)
EMENTA
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE INJUNÇÃO. CABIMENTO. ALEGAÇÃO DE DEMORA NA PRODUÇÃO DE REGULAMENTO. ACOLHIMENTO HUMANITÁRIO. IMPETRANTE QUE FIGURA COMO REFUGIADO. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DE DIREITO OU DE CERCEAMENTO DE LIBERDADE. AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCESSUAL. EXTINÇÃO SEM EXAME DO MÉRITO.
1. O impetrante alega que haveria mora regulamentar em produzir portaria prevista no parágrafo único do art. 145 do Decreto n. 9.199/2017 (Regulamento da Lei de Imigração); em razão disso, ele estaria sendo cerceado em sua postulação de acolhimento humanitário e, portanto, estaria em condição jurídica irregular no Brasil.
2. É cabível a utilização do mandado de injunção no caso da existência de clara mora em produzir normas jurídicas para garantir direitos assegurados constitucionalmente, como leciona o Ministro Celso de Mello: "(...) o direito à legislação só pode ser invocado pelo interessado, quando também existir - simultaneamente imposta pelo próprio texto constitucional - a previsão do dever estatal de emanar normas legais; isso significa que o direito individual à atividade legislativa do Estado apenas se evidenciará naquelas estritas hipóteses em que o desempenho da função de legislar refletir, por efeito de exclusiva determinação constitucional, uma obrigação jurídica indeclinável imposta ao Poder Público (...)" (MI 542/SP, Relator Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, publicado no Diário da Justiça em 28/6/2002, p. 89 e no Ementário vol. 2075-01, p. 24).
3. Os autos comprovam que o impetrante possui um pleito de refúgio, em tramitação no Ministério da Justiça, com base na Lei n. 9.474/1997 e no Decreto n. 9.199/2017, em especial do seu art. 142, II, "d", e do seu art. 156, III; logo, ele possui acesso a toda documentação necessária para viver e trabalhar no Brasil e não está sendo cerceado em nenhum direito.
4. A modificação da sua condição de postulante ao refúgio para a situação de pleiteante ao acolhimento humanitário exigiria providências administrativas que podem ser tomadas pelo impetrante, não tendo havido a comprovação de qualquer óbice das autoridades impetradas para tanto. É imperativo frisar que a figura do acolhimento humanitário é diversa daquela do refúgio; para postular o acolhimento, há necessidade de enquadramento do país de origem nas hipóteses dos incisos do art. 145 do Decreto n. 9.199/2017.
5. Não havendo cerceamento de direitos e liberdades, a hipótese dos autos é a extinção do feito sem o exame do mérito em razão da ausência de interesse processual, pois o impetrante já obteve o reconhecimento do direito que alegadamente estaria postulando: ter reconhecida a regularidade de sua situação jurídica de imigrante, com foco no direito de refúgio. É aplicável ao caso concreto o art. 4º da Lei n. 13.300/2016, combinado com o art. 17 da Código de Processo Civil.
Pedido indeferido sem o exame do mérito.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator):
Deve ser indeferido o feito sem que haja a apreciação do mérito.
Preliminarmente, friso que o mandado de injunção é um remédio constitucional previsto no inciso LXXI do art. 5º da Constituição Federal. A Lei n. 13.300/2016 veio a disciplinar o seu rito processual. A ausência de normas jurídicas ? cuja emanação é determinada pela ordem constitucional ? não pode ser um empecilho à outorga de direitos asseguradas pela Carta Magna.
A propósito:
"(...)
- O direito à legislação só pode ser invocado pelo interessado, quando também existir - simultaneamente imposta pelo próprio texto constitucional - a previsão do dever estatal de emanar normas legais. Isso significa que o direito individual à atividade legislativa do Estado apenas se evidenciará naquelas estritas hipóteses em que o desempenho da função de legislar refletir, por efeito de exclusiva determinação constitucional, uma obrigação jurídica indeclinável imposta ao Poder Público. Para que possa atuar a norma pertinente ao instituto do mandado de injunção, revela-se essencial que se estabeleça a necessária correlação entre a imposição constitucional de legislar, de um lado, e o conseqüente reconhecimento do direito público subjetivo à legislação, de outro, de tal forma que, ausente a obrigação jurídico-constitucional de emanar provimentos legislativos, não se tornará possível imputar comportamento moroso ao Estado, nem pretender acesso legítimo à via injuncional.
(...)" (MI 542/SP, Relator Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 29/8/2001, publicado no Diário da Justiça em 28/6/2002, p. 89, e no Ementário vol. 2075-01, p. 24).
É necessário redescrever o caso em questão.
O impetrante é oriundo do Senegal e alega que sofreria restrição no seu direito à postulação de um acolhimento humanitário no Brasil, em razão da ausência de edição de ato regulamentar previsto no parágrafo único do art. 145 do Decreto n. 9.119/2017. O impetrante argumenta que a sua situação migratória seria irregular. Transcrevo excerto da petição inicial (fls. 6-7, e-STJ):
"(...)
No caso concreto, sendo a parte impetrante pessoa de nacionalidade senegalesa em condição migratória irregular, a ausência de norma regulamentadora tem impedido a solicitação de autorização de residência com fundamento em acolhida humanitária e, consequentemente, tornado inviável o exercício do direito de sair, de permanecer e de reingressar em território nacional, bem como dos seguintes direitos e liberdades constitucionais: (...)
(...)"
Do exame dos autos se infere que o impetrante já ostenta a condição jurídica de postulante ao refúgio. Tal condição é dada com amparo na Lei n. 9.474/1997 (Lei do Refúgio). O Ministério Público Federal frisa essa situação jurídica e factual em seu parecer, do qual transcrevo extrato (fl. 230, e-STJ):
"(...)
Ocorre que o documento de fl. 51, expedido em 06/11/2017, com validade até 06/11/2018, atesta sua condição migratória regular, garantindo-lhe os mesmos direitos de qualquer outro estrangeiro em situação regular no Brasil.
O impetrante possui, inclusive, Carteira de Trabalho e Previdência Social - CTPS, em que consta assinatura de empregador, e inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (fls. 30/49).
Outrossim, não há qualquer prova de que o recorrente esteja impedido de sair, de permanecer ou de reingressar no território nacional, ou ainda, que esteja impedido de gozar dos direitos previstos nos incisos XIII, XV do artigo 5º, no artigo 6º, no artigo 196 e no artigo 295, todos da Constituição Federal, conforme relata na petição inicial. Essas alegações, na verdade, tratam-se de meras conjecturas e suposições desprovidas de comprovação, que não dão ensejo à impetração de Mandado de Injunção com esse fundamento.
Por outro lado, da análise do documento de fl. 51, verifica-se que o impetrante possui o 'status' de refugiado.
(...)"
Assim, cabe notar que o regime jurídico aplicável em tal situação é derivado da já mencionada Lei n. 9.474/1997 e do Decreto n. 9.199/2017, em especial do seu art. 142, II, "d", e do seu art. 156, III.
A situação jurídica em questão foi bem deslindada pela Nota Técnica da Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça (Nota n. 30/2018/DIEP/DEMIG/SNJ/MJ), da qual cito trecho (fl. 177, e-STJ):
"(...)
6. A despeito das alegações da defesa do estrangeiro, de que a sua situação migratória é irregular, os documentos que instruem o processo revelam justamente o contrário, haja vista que, em 06/01/2014, na Delegacia de Polícia Federal de Caxias do Sul/RJ, por meio do processo nº 08451.001509/2014-87, formalizou pedido de Refúgio perante o Estado Brasileiro com apoio na Lei nº 9.747/1997, assim como em 26/06/2015, através do processo nº 08505.074711/2015-36, na Superintendência da Polícia Federal na Cidade de São Paulo/SP, formalizou a prorrogação de validade de seu protocolo de registro, sendo em ambas oportunidades atendido em seu pedido.
7. Nesse cenário, verifica-se que a simples formalização do pedido de refúgio é suficiente para suspende eventual procedimento administrativo que pese em desfavor do interessado até que haja uma decisão definitiva sobre o seu pleito, conforme se verifica do Art. 10, da Lei de Refúgio.
Art. 10. A solicitação, apresentada nas condições previstas nos artigos anteriores, suspenderá qualquer procedimento administrativo ou criminal pela entrada irregular, instaurado contra o peticionário e pessoas de seu grupo familiar que o acompanhem.
§ 1º Se a condição de refugiado for reconhecida, o procedimento será arquivado, desde que demonstrado que a infração correspondente foi determinada pelos mesmos fatos que justificaram o dito reconhecimento.
8. Tanto é assim que, apenas com o protocolo do seu pedido de refúgio - que serve como documento de identidade no país para todos os efeitos legais -, teve acesso à Carteira de Trabalho e Previdência Social, CPF e, munido desses documentos, conseguiu, inclusive, acessar formalmente o mercado de trabalho, sendo-lhe ainda facultado a abertura de conta bancária, acesso à rede de saúde, ensino e assistência social do país sem qualquer outra formalidade.
9. Por outro lado, caso o interesse do Autor seja de que o seu pedido de refúgio seja apreciado pelo Governo brasileiro como acolhida humanitária, como deixa expresso em seu processo judicial, bastaria apresentar em uma das unidade da Polícia Federal requerimento nesse sentido, que certamente o seu pleito seria analisado com base na legislação em vigor.
(...)
11. Posto isto, verifica-se a total improcedência da alegação de que a ausência da suposta norma regulamentadora tem impedido a solicitação de autorização de residência com fundamento em acolhida humanitária e, consequentemente, tornado inviável o exercício do direito de sair, de permanecer e de reingressar em território nacional, posto que o direito de petição, constitucionalmente reconhecido, é amplamente garantido pelas autoridades migratória brasileiras.
(...)"
Ainda, a mencionada Nota Técnica evidencia ser improcedente a alegação jurídica de que haveria obstáculo administrativo para a permanência do impetrante no país. Ela informa que o impetrante obteve a condição de refugiado, havendo processo administrativo em tramitação no Ministério da Justiça. Assim, não haveria razão para postular a outorga de um acolhimento humanitário, uma vez que ele já foi enquadrado como refugiado. Ademais, argumenta que, caso houvesse interesse em alterar o fundamento do pedido, seria possível pleitear a alteração da condição de refugiado para de postulante ao acolhimento humanitário.
Por fim, cabe notar que a postulação pelo acolhimento humanitário somente seria possível com base no rol de situações fáticas do país de origem, que estão descritas e listadas nos incisos do art. 145 do Decreto 9.199/2017. Cito:
"Art. 145. A autorização de residência para fins de acolhida humanitária poderá ser concedida ao apátrida ou ao nacional de qualquer país em situação de:
I - instabilidade institucional grave ou iminente;
II - conflito armado;
III - calamidade de grande proporção;
IV - desastre ambiental; ou
V - violação grave aos direitos humanos ou ao direito internacional humanitário."
As situações listadas no art. 145 do Decreto n. 9.199/2017 tem se amoldado ao caso de diversos haitianos, em razão da notória crise que atinge aquele país. Para tanto, houve a edição da Portaria Interministerial n. 10, de 6 de abril de 2018, publicada no Diário Oficial da União (Seção 1, p. 57), de 9 de abril de 2018 (fl. 180, e-STJ). Todavia, cabe notar que a referida Portaria somente se aplica aos ingressantes do Haiti, o que não é o caso do impetrante, oriundo do Senegal.
Não há inércia legislativa, portanto, uma vez que, como está claro e comprovado, o impetrante postula a condição de refugiado, a qual está prevista na Lei n. 9.474/1997 e no Decreto n. 9.199/2017.
Porém, o resultado do feito deve ser a denegação sem o exame do mérito, uma vez que inexiste interesse processual, portanto. Inexistindo essa condição da ação, não cabe o processamento, por força do art. 4º da Lei n. 13.300/2016 combinado com o art. 17 da Código de Processo Civil.
A falta de interesse processual deriva do fato de que o impetrante não está em situação irregular e, ao contrário do que alega, está em curso o feito administrativo para decidir sobre o seu pedido de refúgio.
Ante o exposto, indefiro do pedido de injunção e extingo o feito sem o exame do mérito.
É como penso. É como voto.
MINISTRO HUMBERTO MARTINS
Relator