RECURSO ESPECIAL Nº 1.528.304 - RS (2015/0088827-2)
RELATOR : MINISTRO HUMBERTO MARTINS
RECORRENTE : FAZENDA NACIONAL
RECORRIDO : LABOR SERVICOS DE ASSEIO E CONSERVACAO LTDA
ADVOGADO : CLÁUDIA LARRATÉA ECHEVERRIA MOREIRA
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator):
Cuida-se de recurso especial interposto pela FAZENDA NACIONAL, com fundamento no art. 105, inciso III, alínea "a", da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região assim ementado (fls. 307/312, e-STJ).
"TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. TRANSFORMAÇÃO DE COOPERATIVA EM SOCIEDADE LIMITADA. ALTERAÇÃO DA RAZÃO SOCIAL NO CNPJ. INDEFERIMENTO PELA DELEGACIA DA RECEITA FEDERAL. EXIGÊNCIA DE EXTINÇÃO DA COOPERATIVA. ILEGALIDADE DO ATO.
Considerando que a alteração do tipo jurídico da cooperativa para sociedade limitada já foi admitida pela Junta Comercial e que o art. 63, IV, da Lei 5.764/71, que rege as Cooperativas, dispõe que as sociedades cooperativas se dissolvem de pleno direito 'devido à alteração de sua forma jurídica', é ilegal o ato administrativo que exige a prévia dissolução para a alteração no registro, devendo ser providenciada na alteração cadastral como requerido".
Nas razões do recurso especial, a recorrente aduz negativa de vigência ao art. 63, IV e parágrafo único, da Lei n. 5.764/71, porquanto entende que eventual pretensão na alteração da forma jurídica da cooperativa em sociedade limitada incorreria "primeiro na sua dissolução, ou seja, no cancelamento da sua autorização para funcionar e do registro, para que depois possa se dar a transformação (parágrafo único)" (fl. 323, e-STJ).
Sem contrarrazões, sobreveio o juízo de admissibilidade positivo da instância de origem (fl. 343, e-STJ).
É, no essencial, o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.528.304 - RS (2015/0088827-2)
EMENTA
ADMINISTRATIVO. SOCIEDADE COOPERATIVA. TIPO DE SOCIEDADE SIMPLES. TRANSFORMAÇÃO EM TIPO DIVERSO. POSSIBILIDADE. PRESCINDIBILIDADE DE DISSOLUÇÃO OU LIQUIDAÇÃO.
1. O art. 4º da Lei n. 5.764/71 estabelece que "as cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados (...)".
2. Consoante jurisprudência do STJ, as cooperativas, nos termos do art. 982, parágrafo único, do Código Civil, são sociedades simples que não exercem atividade empresarial (art. 1.093 do mesmo diploma legal).
3. O art. 63, IV, da Lei 5.765/71 prevê que, em caso de transformação da forma jurídica, ocorrerá, de pleno direito, a dissolução da sociedade cooperativa, dissolução esta compreendida como a resolução da função social para a qual foi criada a cooperativa em decorrência da transformação do tipo de sociedade.
4. O art. 1.113 do Código Civil de 2002 autoriza o ato de transformação societária independentemente "de dissolução ou liquidação da sociedade", resguardando, apenas, a observância dos "preceitos reguladores da constituição e inscrição do tipo em que vai converter-se", de modo que a transformação do tipo societário simples (classificação das cooperativas) não impõe a necessidade de liquidá-la, porque a pessoa jurídica é uma só, tanto antes como depois da operação, mudando apenas o tipo (de cooperativa para limitada, na hipótese).
Recurso especial improvido.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator):
Consoante relatado, a Fazenda Pública alega que a devida interpretação do art. 63 da Lei n. 5.764/71 conduz à interpretação de que, "acaso a sociedade cooperativa resolva se transformar em outro tipo societário (...), tal ato implica na sua dissolução, ato este que importa, implica no cancelamento da autorização para funcionar e do registro da sociedade. Se há o cancelamento da autorização para funcionar e do registro da sociedade, tal consequência tem por origem a dissolução da sociedade" (fl. 323, e-STJ).
O artigo em comento assim estabelece:
"Art. 63. As sociedades cooperativas se dissolvem de pleno direito:
I - quando assim deliberar a Assembléia Geral, desde que os associados, totalizando o número mínimo exigido por esta Lei, não se disponham a assegurar a sua continuidade;
II - pelo decurso do prazo de duração;
III - pela consecução dos objetivos predeterminados;
IV - devido à alteração de sua forma jurídica;
V - pela redução do número mínimo de associados ou do capital social mínimo se, até a Assembléia Geral subseqüente, realizada em prazo não inferior a 6 (seis) meses, eles não forem restabelecidos;
VI - pelo cancelamento da autorização para funcionar;
VII - pela paralisação de suas atividades por mais de 120 (cento e vinte) dias.
Parágrafo único. A dissolução da sociedade importará no cancelamento da autorização para funcionar e do registro".
À luz de tais preceitos, assim consignou a Corte de origem:
"Tenho por equivocada a interpretação conferida pelo magistrado ao art. 63, IV, da Lei 5.765/71 (lei especial que institui o regime jurídico das sociedades cooperativas).
Ocorre que o art. 63, IV, da Lei 5.765/71 prevê justamente que, em caso de transformação da forma jurídica, ocorrerá, de pleno direito, a dissolução da sociedade cooperativa, donde se extrai que não existe vedação à alteração do tipo societário, bem como não é exigível a prévia extinção da sociedade cooperativa, como imposto pela autoridade coatora.
Nesse sentido, já decidiu o TRF1, em demanda idêntica, verbis:
ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. TRANSFORMAÇÃO DE COOPERATIVA EM SOCIEDADE LIMITADA. ALTERAÇÃO DA RAZÃO SOCIAL NO CNPJ. INDEFERIMENTO PELA DELEGACIA DA RECEITA FEDERAL. EXIGÊNCIA ILEGAL DE LIQUIDAÇÃO DA COOPERATIVA. SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. Está configurada a ilegalidade do cancelamento do CNPJ provisório da impetrante, porque não é exigível a liquidação da cooperativa para caracterizar sua dissolução, uma vez que o inciso IV do art. 63 da Lei 5.764/71, que rege as Cooperativas, dispõe que as sociedades cooperativas se dissolvem de pleno direito 'devido à alteração de sua forma jurídica', sendo essa a hipótese dos autos, em que houve transformação da cooperativa em sociedade limitada. A segurança deve ser concedida para assegurar à impetrante o direito de manutenção do mesmo número de cadastro no CNPJ e para seja dado andamento ao pedido de alteração da razão social. 2. Dá-se provimento ao recurso de apelação.
(AMS 0053903-60.2002.4.01.3800 / MG, Rel. JUIZ FEDERAL RODRIGO NAVARRO DE OLIVEIRA, 4ª TURMA SUPLEMENTAR, e-DJF1 p.354 de 15/05/2013)
Do voto do Relator convocado, Juiz Federal Rodrigo Navarro de Oliveira, extrai-se:
Assiste razão à impetrante quando se insurge contra a sentença que denegou a segurança postulada para restabelecer seu CNPJ, que fora cancelado após a transformação de cooperativa para sociedade empresária sob a forma de sociedade limitada (Cooperativa Educacional de Montes Claros Ltda. para Colégio Integral Sociedade Civil Ltda.). Isso porque está caracterizada a ilegalidade do cancelamento do CNPJ, porque não é exigível a liquidação da cooperativa para caracterizar sua dissolução, uma vez que o inciso IV do art. 63 da Lei 5.764/71, que rege as Cooperativas, dispõe que as sociedades cooperativas se dissolvem de pleno direito 'devido à alteração de sua forma jurídica', sendo essa a hipótese dos autos, em que houve transformação da cooperativa em sociedade limitada.
Segundo o art. 220 da Lei 6.404/76, transformação é a operação pela qual a sociedade passa, independentemente de dissolução e liquidação, de um tipo para outro. Desse modo, vê-se que o óbice criado pela Delegacia da Receita Federal de Montes Claros para a transformação é ilegal, assim como o é o cancelamento do CNPJ.
Nesse sentido é o parecer do Procurador Regional da República Antonio Carlos Alpino Bigonha, cujo excerto transcrevo abaixo e adoto como razões de decidir (fls. 224-225):
(...)
Ora, o dispositivo legal é claro ao estabelecer que, de pleno direito, há dissolução da cooperativa no caso de alteração de sua natureza jurídica, precisamente a hipótese dos autos. Ademais, não parece razoável exigir que a cooperativa, para transformar-se em sociedade civil, tenha que passar antes pela extinção formal e só posteriormente seja constituída nova pessoa jurídica. Ora, o que buscaram os sócios com a transformação foi justamente modificar os estatutos e a natureza da entidade sem solução de continuidade das atividades constantes do seu objeto social.
No caso dos autos, a Impetrante formalizou a nova natureza jurídica da entidade, como sociedade civil com fins lucrativos, perante o Cartório Civil do Registro de Pessoas Jurídicas, mediante decisão de sua Assembléia Geral. Tal, nos precisos termos do art. 63, IV, da Lei n. 5.746/71, implica concomitantemente em dissolução da cooperativa e constituição da nova sociedade civil, isto é, na transformação da cooperativa em sociedade, exatamente o que pretende ver reconhecido nesta ação.
Daí pode-se concluir que o ato administrativo que determinou o cancelamento do CNPJ provisório concedido à Impetrante é ilegal, na medida em que impede o regular funcionamento da nova entidade civil, sobretudo quando tal procedimento não obedeceu ao devido processo legal.
(...)
Ante o exposto, dou provimento ao recurso de apelação da impetrante para reformar a sentença e conceder a segurança, a fim de que seja restabelecido seu CNPJ provisório e que se prossiga na análise do requerimento de alteração da razão social no CNPJ.
É como voto.
Assim, não subsiste o motivo de indeferimento da solicitação, qual seja o de que a alteração da natureza jurídica não é permitida pela legislação (procadm5, ev. 1).
Dessa forma, considerando que a alteração do tipo jurídico da cooperativa para sociedade limitada já foi admitida pela Junta Comercial e que o art. 63, IV, da Lei 5.764/71, que rege as Cooperativas, dispõe que as sociedades cooperativas se dissolvem de pleno direito 'devido à alteração de sua forma jurídica', é ilegal o ato administrativo que exige a prévia dissolução para a alteração no registro, devendo ser providenciada na alteração cadastral como requerido.
Ante o exposto, voto por dar provimento à apelação".
O entendimento firmado merece respaldo.
O art. 4º da Lei n. 5.764/71 estabelece que "as cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados (...)".
A Cooperativa é sociedade constituída para prestar serviços aos associados, suprindo "necessidade ou necessidades, que podem ser satisfeitas ou mais eficientemente satisfeitas com a cooperação" (MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller, 2007, tomo 49, p. 571).
Por seu turno, a doutrina de Nilson Reis Júnior:
"A nosso ver, as cooperativas não têm natureza sui generis , civil ou comercial. É que, em virtude das particularidades próprias, apresentam inequívoca originalidade em sua organização, em sua atuação e em seu funcionamento, com objetivos singulares, constituindo-se, assim, uma nova categoria de sociedade cooperativa.
Waldirio Bulgarelli assim já se manifestava desde 1967, quando da publicação de sua tese de doutorado, cujo objeto era a autonomia do Direito Cooperativo.
Desse modo, ao lado das coletividades civis e das empresariais, devemos ter as sociedades cooperativas, com gênero próprio, regidas por regras próprias, com princípios, valores e éticas próprios, configurando-se, assim, a autonomia do Direito Cooperativo.
E conclui a ministra do Superior Tribunal de Justiça, Fátima Nancy Andrighi:
Nesse contexto, é imprescindível atestar que a autonomia do Direito Cooperativo tem como esteio justamente a natureza peculiar das sociedades cooperativas em relação às demais instituições, formando um sistema próprio e independente, por incompatível a sua sistema jurídica com a orientação e o conteúdo das normas de outros ramos.
Contudo, essa natureza jurídica própria da cooperativa não foi reconhecida pela legislação brasileira. Pelo contrário, o Código Civil de 2002 desconsiderou por completo o avanço conquistado pelo movimento cooperativista nesse sentido, ao atribuir à cooperativa natureza de sociedade simples.
Vislumbrando acerto nessa disposição, por encerrar a vetusta e infindável discussão sobre a real natureza da sociedade cooperativa, afirmou Modesto Carvalhosa:
(...) O Código Civil de 2002 pôs fim a essa controvérsia, estabelecendo em seu art. 982, parágrafo único, que, independentemente de seu objeto a cooperativa terá sempre natureza jurídica de sociedade simples.
Com efeito, o ideal é que o legislador pátrio reconheça a natureza jurídica própria da sociedade cooperativa, dadas suas peculiaridades, o que a torna, conseqüentemente, original perante as demais sociedades existentes."
(REIS JÚNIOR, Nilson. Aspectos Societários das Cooperativas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006, p. 54-56).
No mesmo caminho, a jurisprudência do STJ, ao reconhecer à cooperativa a natureza jurídica de sociedade simples:
"1. As cooperativas são sociedades simples ? nos termos do art. 982, parágrafo único, do Código Civil ? que, por definição, não exercem atividade empresarial (art. 1.093 do mesmo diploma legal). Por essa razão, não se sujeitam à legislação falimentar, mas sim ao procedimento de liquidação previsto pelos arts. 63 a 78 da Lei 5.764/1971, que não contempla o benefício de exclusão das multas e dos juros moratórios. Precedentes do STJ."
(AgRg no REsp 808.241/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/04/2009, DJe 17/06/2009.)
"1. Por ser sociedade simples, por ter regras próprias de liquidação e por não estar sujeita a falência, à sociedade cooperativa não se aplicam as disposições contidas no Decreto-Lei 7.661/45. Nesse sentido: REsp 803.633/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 15.10.2007."
(REsp 882.014/SP, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/09/2008, DJe 29/09/2008.)
Nesse contexto, a melhor interpretação que se infere quanto à dissolução de pleno direito em decorrência da alteração de sua forma jurídica é aquela que implica reconhecer tão somente a resolução da função social para a qual foi criada a cooperativa, promovendo sua conversão na entidade societária pretendida, como consignou o acórdão recorrido.
Relevante relembrar que o art. 1.113 do Código Civil de 2002 autoriza o ato de transformação societária independentemente "de dissolução ou liquidação da sociedade", resguardando, apenas, a observância dos "preceitos reguladores da constituição e inscrição do tipo em que vai converter-se", de modo que a transformação do tipo societário simples (classificação das cooperativas) não impõe a necessidade de liquidá-la, porque a pessoa jurídica é uma só, tanto antes como depois da operação, mudando apenas o tipo de cooperativa para limitada, na hipótese.
Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.
É como penso. É como voto.
MINISTRO HUMBERTO MARTINS
Relator