HABEAS CORPUS Nº 47.990 - SP (2005/0154207-6)
RELATÓRIO
O SENHOR MINISTRO PAULO GALLOTTI: Cuida-se de habeas corpus impetrado pelo Dr. João Cesar Barbieri Bedran de Castro, Procurador do Estado de São Paulo, em favor do adolescente L. B. S., apontando como autoridade coatora o Tribunal de Justiça.
Colhe-se do processado que o paciente foi representado pela prática de ato infracional equiparado ao delito previsto no artigo 157, § 2º, incisos I, II e V, do Código Penal, sendo imposta a medida de internação sem prazo determinado.
Inconformada, a defesa apelou, tendo o Tribunal de Justiça, por unanimidade de votos, negado provimento ao recurso, guardando o julgado a seguinte ementa:
"Menor - Atos infracionais equivalentes ao roubo qualificado e seqüestro.
Preliminares de nulidade - Na audiência de apresentação o menor foi ouvido e confessou a autoria da infração na presença de curador e defensor que lhe foi nomeado - Defensor que no mesmo ato desiste expressamente de produção de provas - Homologação e encerramento da instrução - Debates - Celeridade processual que atende ao interesse do menor. Inexistência de comprovação de prejuízo para a defesa - Preliminares rejeitadas - Confissão - Ressonâncias em provas existente nos autos - Conduta do adolescente em que se revela frieza e insensibilidade com o sofrimento alheios - Internação - Medida adequada para ressocialização e manutenção da tranqüilidade social - Recurso improvido." (fl. 39)
Aduz a impetração que, com base no artigo 227, § 3º, inciso V, da Constituição Federal, não se pode impor aos inimputáveis medida mais grave do que aquela prevista para os imputáveis que praticam o mesmo ato, ou seja, se, nos termos do artigo 33 do Código Penal, a pena aplicada ao maior que comete o delito de roubo qualificado seria cumprida no regime semi-aberto, ou aberto, não se mostra possível privar o menor de sua liberdade, ainda que sob o pretexto de tratar-se de medida de reeducação.
Assim, requer seja o paciente inserido em regime diverso da internação.
Deferida a liminar e prestadas as informações, a Subprocuradoria-Geral da República manifestou-se pela concessão da ordem.
É o relatório.
HABEAS CORPUS Nº 47.990 - SP (2005/0154207-6)
VOTO
O SENHOR MINISTRO PAULO GALLOTTI (RELATOR): A meu ver há constrangimento ilegal a ser sanado de ofício.
Ao adolescente, representado pela prática de ato infracional correspondente ao delito previsto no artigo 157, § 2º, incisos I, II e V, do Código Penal, foi aplicada medida sócio-educativa de internação por prazo indeterminado.
Ocorre que a referida medida foi determinada ainda em audiência de apresentação, tendo, tanto a acusação quanto a defesa desistido da produção de provas e oitivas de testemunhas, sem que houvesse a audiência de continuação, conforme prevê o art. 186, § 2º, do ECA.
No acórdão hostilizado, o Tribunal de origem entendeu ser desnecessária a realização da audiência de continuação para a imposição da medida de internação, em virtude da confissão judicial da adolescente na presença de sua defesa técnica, que teria concordado expressamente em desistir da dilação probatória.
Em casos tais, esta Corte já firmou compreensão no sentido de que a homologação da desistência das partes da produção de outras provas, diante da confissão do adolescente da prática do ato infracional, viola as garantias constitucionais da ampla defesa, do devido processo legal e do contraditório, assegurados aos menores infratores nos arts. 110, 111, II, e 114 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
A simples confissão, por si só, não pode embasar decisão de internação, devendo o juiz confrontar o seu teor com as demais provas do processo, verificando se existe compatibilidade entre elas, conforme dispõe o art. 197 do Código de Processo Penal, não se podendo abrir mão da produção da prova judicial quando se cuidar de interesse de menor infrator, notadamente por se tratar de direito indisponível.
O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o tema:
"Defesa e due process: aplicação das garantias ao processo por atos infracionais atribuídos a adolescente.
1. Nulidade do processo por ato infracional imputado a adolescentes, no qual o defensor dativo aceita a versão de fato a eles mais desfavorável e pugna por que se aplique aos menores medida de internação, a mais grave admitida pelo Estatuto legal pertinente.
2. As garantias constitucionais da ampla defesa e do devido processo penal - como corretamente disposto no ECA (art. 106- 111) - não podem ser subtraídas ao adolescente acusado de ato infracional, de cuja sentença podem decorrer graves restrições a direitos individuais básicos, incluída a privação da liberdade.
3. A escusa do defensor dativo de que a aplicação da medida sócio-educativa mais grave, que pleiteou, seria um benefício para o adolescente que lhe incumbia defender - além do toque de humor sádico que lhe emprestam as condições reais do internamento do menor infrator no Brasil - é revivescência de excêntrica construção de Carnellutti - a do processo penal como de jurisdição voluntária por ser a pena um bem para o criminoso - da qual o mestre teve tempo para retratar-se e que, de qualquer sorte, à luz da Constituição não passa de uma curiosidade." (RE nº 285.571-5/PR, Relator o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, DJU DJU 6/4/2001)
Veja a nossa jurisprudência:
A - "HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. OFENSA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL E À AMPLA DEFESA. SUPRESSÃO DE ETAPAS DO PROCESSAMENTO. NULIDADE. ORDEM CONCEDIDA.
1. Não se discute a possibilidade de aplicação da medida sócio-educativa de internação, quando há descumprimento reiterado e injustificável de medida anteriormente imposta (Lei 8.069/90, art. 122, inc. III).
2. Contudo, o julgamento pela procedência da representação, com aplicação de medida sócio-educativa, com base apenas na confissão do menor infrator, sem a produção de qualquer outra prova, constitui constrangimento ilegal, tendo em vista que viola os princípios constitucionais relativos ao devido processo legal e à ampla defesa.
3. Ordem concedida para anular a decisão que julgou procedente a representação oferecida contra a paciente e o acórdão impugnado, a fim de que seja procedida a prévia instrução probatória, determinando-se que a adolescente aguarde o desfecho do processo em liberdade assistida".
(HC 40342/SP, Relator o Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, DJU de 22/8/2005)
B - "CRIMINAL. HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ATO INFRACIONAL EQUIPARADO AO ROUBO MAJORADO. CONFISSÃO. DESISTÊNCIA DE PRODUÇÃO DE OUTRAS PROVAS. APLICAÇÃO DA MEDIDA DE INTERNAÇÃO. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E DA AMPLA DEFESA. EXTENSÃO, DE OFÍCIO, AO ADOLESCENTE R.A.S.
I - A ampla defesa, um dos corolários do devido processo legal, é garantia processual aplicável também ao procedimento previsto na Lei nº 8.069/90, não sendo admissível o seu afastamento por iniciativa do defensor e do membro do Ministério Público (Precedentes).
II - A aplicação de medida sócio-educativa de internação a adolescente, sem a devida instrução probatória, constitui constrangimento ilegal passível de reforma pela via do writ.
III - Estando o adolescente R. A. S. em situação processual idêntica à do paciente, deve ser-lhe estendida, de ofício, os efeitos desta decisão.
Ordem concedida".
(HC 42384/SP, Relator o Ministro FELIX FISCHER, DJU de 13/6/2005)
C - "HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ATO INFRACIONAL ANÁLOGO AO DELITO DE ROUBO QUALIFICADO. MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA DE INTERNAÇÃO. CONFISSÃO DESISTÊNCIA DE PRODUÇÃO DE OUTRAS PROVAS. CERCEAMENTO DO DIREITO DEFESA. GARANTIA CONSTITUCIONAL. IRRENUNCIABILIDADE.
1. Ao princípio da ampla defesa deve ser dado tratamento o mais abrangente possível, conjugando três realidades procedimentais: o direito à informação, a bilateralidade da audiência e o direito à prova legitimamente obtida ou produzida;
2. Esta Corte, em defesa dos direitos e garantias fundamentais esculpidos em nossa Carta Constitucional, vem decidindo, em casos semelhantes, pela nulidade da decisão que, fundada somente na confissão do menor, com a dispensa de produção de outras provas, impõe medida sócio-educativa de internação;
3. 'Com efeito (...), o direito à ampla defesa é irrenunciável, não podendo dele dispor o réu ou seu representado, seu advogado ou o Ministério Público, ainda que o acusado admita o cometimento da infração e queira cumprir a pena. Noutra senda, o respeito ao devido processo legal também interessa ao Estado, representado na figura do Parquet, na medida em que busca o esclarecimento dos fatos, não punindo o inocente';
4. Ordem concedida, para determinar a nulidade da sentença que impôs a medida de internação, afim de que se proceda à necessária instrução, dispondo, ainda, que o paciente aguarde a conclusão do processo em liberdade assistida".
(HC 42496/SP, Relator o Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA , DJU de 6/6/2005)
D - "CRIMINAL. ECA. ROUBO QUALIFICADO. CONFISSÃO. HOMOLOGAÇÃO DA DESISTÊNCIA DE PRODUÇÃO DE OUTRAS PROVAS. CERCEAMENTO DO DIREITO DE DEFESA. IRRENUNCIABILIDADE. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. ORDEM CONCEDIDA.
I. Hipótese em que, diante da confissão da prática do ato infracional feita pelos adolescentes, desistiu-se da produção de outras provas, o que foi homologado pelo juiz monocrático.
II. O direito de defesa é consagrado na Constituição Federal, na parte que dispõe que 'aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.'.
II. A tutela do direito de impugnar acusação de eventual prática de delitos ou, como ocorre in casu, de ato infracional, interessa, também, ao Estado, na medida em que se procura esclarecer os fatos em busca da verdade real.
III. O direito de defesa é irrenunciável, não podendo dele dispor o réu ou o representado, seu advogado, ou o Ministério Público, ainda que o acusado admita a acusação e pretenda cumprir a pena.
IV. A instrução probatória configura um dos meios pelo qual o paciente poderia exercer seu direito de defesa, o que não ocorreu, sendo que a ampla defesa, como princípio constitucional que é, deve ser exercida no âmbito do devido processo legal.
V. Deve ser anulada a decisão que julgou procedente a representação oferecida contra os pacientes, a fim de que seja procedida a prévia instrução probatória, determinando-se que os adolescentes aguardem o desfecho do processo em liberdade assistida, prejudicadas as demais alegações.
VI. Ordem concedida, nos termos do voto do Relator."
(HC de nº 38.994/SP, Relator o Ministro GILSON DIPP, DJU de 9/2/2005)
Do exposto, não conheço do habeas corpus e concedo a ordem de ofício para anular a sentença de primeiro grau, a fim de que seja realizada audiência de continuação, devendo o adolescente aguardar a nova decisão em regime mais brando.
É como voto.