Inteiro teor - REsp 1107195

Copiar
RECURSO ESPECIAL Nº 1.107.195 - SP (2008/0275528-0) RELATOR : MINISTRO NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO RECORRIDO : FERNANDO ALBERTO DE SANT'ANA ADVOGADO : TRÍCIA CAMARGO DE OLIVEIRA RELATÓRIO 1. Cuida-se de Recurso Especial interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra acórdão proferido em Habeas Corpus impetrado perante o egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em favor do ora recorrido, FERNANDO ALBERTO DE SANT'ANA, em que se alegava a existência de constrangimento ilegal nos autos da Ação Penal em que foi denunciado como incurso nas penas do art. 186, VI e VII do DL 7.661/45, decorrente da não-observância do disposto nos arts. 104, 105, 106 e 107 do DL 7.661/45, bem como se requeria a sustação do inquérito judicial relativo à falência da BRASIMAC S/A Eletrodomésticos, a declaração de nulidade da denúncia e da decisão que a recebeu e o consequente reconhecimento da ocorrência da prescrição da pretensão punitiva estatal. 2. A Corte de origem concedeu a ordem e decretou a extinção da punibilidade do então paciente FERNANDO ALBERTO SANT'ANA, em virtude da ocorrência da alegada prescrição da pretensão punitiva, tecendo as seguintes considerações: O presente pedido de habeas corpus comporta concessão. Com efeito, de rigor anular-se todos os atos praticados após o recebimento da 'exposição circunstanciada' do Síndico pela MM. Juíza, devendo, em seguida, ser reconhecida a prescrição da pretensão punitiva. Certo que após a apresentação de tal exposição do Síndico, a i. Juíza realmente não seguiu o preceituado na Lei de Falência - Decreto-Lei 7.661/45, especificamente os arts. 104, 105, 106 e 107. Tais fases procedimentais foram suprimidas. Entretanto, necessário que sejam seguidas, vez que o paciente ficou impedido, inclusive, de exercitar seu direito de defesa, previsto no art. 106 do Decreto-Lei. Verificado, portanto, que houve tumulto processual, de rigor a nulidade dos atos subsequentes à apresentação da 'exposição circunstanciada'. Assim, anulado inclusive o recebimento da denúncia, causa interruptiva da prescrição, de rigor o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva estatal, segundo o que reza o art. 199 e parágrafo único, e art. 132, § 1o. ambos do Decreto-Lei 7.661/45. Isso porque, no Decreto-Lei supracitado, a prescrição ocorre quando decorrem 04 anos entre a data da declaração judicial da quebra e o recebimento da denúncia, diferentemente do preconizado na Lei 11.101/05, que agora regula a matéria, pelas normas do Código Penal. E é o que se verifica no presente caso. A quebra é datada de 23/06/93, decorridos, portanto, até a presente data, mais de 04 anos. Ante o exposto, concede-se o habeas corpus e decreta-se a extinção da punibilidade de Fernando Alberto de Sant'ana, pela ocorrência da prescrição da pretensão punitiva (fls. 42/44). 3. Os Embargos de Declaração opostos pelo douto Ministério Público do Estado de São Paulo foram rejeitados, tendo a Corte de origem consignado que à simples leitura do art. 192 da Lei 11.101/05, a qual se quer seja aplicada ao presente caso, verifica-se, de forma expressa, que tal lei não se aplica a processos de falência ou concordata ajuizados anteriormente ao início de sua vigência, que serão concluídos nos termos do Decreto-Lei 7.661/45. Verificado que a quebra da empresa BRASIMAC S/A Eletrodomésticos é datada de 23/06/03, de rigor, portanto, a incidência do Decreto-Lei 7.661/45. 4. Daí o Recurso Especial ora interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, com esteio no art. 105, III, a da Magna Carta, em que se alega ofensa aos arts. 2o., 12 e 46, § 1o. do CPP e 187 da Lei 11.101/05, sob os seguintes fundamentos: Com o advento da Lei 11.101, de 2005, não mais se aplicam as normas processuais penais (art. 104 a 107) previstas na antiga Lei de Falências (DL 7.661/45). A nova legislação criou outra sistemática para a persecução penal nos processos falenciais, com o artigo 187 da Lei 11.101/2005, desejando impor uma celeridade processual à responsabilização criminal. Por outro lado, as regras processuais da Lei 11.101/2005 se aplicam imediatamente, como dispõe o artigo 2o. do CPP. Assim, não é mais necessário conceder qualquer prazo aos credores, falidos ou ao Ministério Público para a instauração de uma investigação criminal. Não existe mais a figura do inquérito judicial e o Ministério Público pode oferecer, assim, a denúncia, com base nas peças de informações ou requisitar a abertura de inquérito policial, como dispõe o art. 187 da Lei 11.101/2005. Aliás, o § 2o. do artigo 187 da lei de Recuperação Judicial deixa clara a possibilidade de, a qualquer momento, ser promovida a ação penal (fls. 86/87). 5. O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO sustenta, ainda, que o art. 192 da Lei 11.101/2005, segundo o qual a Lei 11.101/05 não se aplica aos processos de falência ou concordata ajuizados antes do início de sua vigência, não se refere às questões processuais penais, mas apenas às regras de processo civil e de direito material falimentar. Requer, por fim, o provimento do Apelo Nobre em razão da violação dos dispositivos mencionados, a fim de se restabelecer a decisão do douto Juízo de primeiro grau que recebeu a denúncia e dar prosseguimento à ação penal a partir do ponto em que foi obstada em relação ao ora recorrido. 6. Apresentadas as contra-razões às fls. 130/135, o Tribunal a quo admitiu o Recurso Especial. 7. Parecer do douto Ministério Público Federal pelo conhecimento e provimento do Apelo Nobre. 8. É o relatório. RECURSO ESPECIAL Nº 1.107.195 - SP (2008/0275528-0) RELATOR : MINISTRO NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO RECORRIDO : FERNANDO ALBERTO DE SANT'ANA ADVOGADO : TRÍCIA CAMARGO DE OLIVEIRA VOTO PENAL. PROCESSUAL PENAL. CRIMES FALIMENTARES. DL 7.661/45 E LEI 11.101/05. AÇÃO PENAL FALIMENTAR AJUIZADA APÓS A ENTRADA EM VIGOR DA LEI DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS. NÃO INCIDÊNCIA DO ART. 192 DA LEI 11.101/05. RESTABELECIMENTO DA DECISÃO QUE RECEBEU A DENÚNCIA, NOS MOLDES DA LEI 11.101/2005. ART. 182 DA LRE. APLICAÇÃO DO CPB QUANTO À PRESCRIÇÃO. CRIMES CUJA PENA MÁXIMA PRIVATIVA DE LIBERDADE COMINADA É DE 3 ANOS. PRAZO PRESCRICIONAL DE 8 ANOS, DE ACORDO COM O ART. 109, IV DO CPB. SENTENÇA QUE DECRETOU A FALÊNCIA PROLATADA EM 23/06/2003. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA EM 22/06/2007. INOCORRÊNCIA DA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO PENAL. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO. 1. O fenômeno da ultratividade legal ou normativa é de aplicação restrita aos casos em que a norma anterior, mesmo revogada, conduz à solução mais favorável à pessoa processada, diante da norma afluente que contempla solução mais severa, mas a sua aplicação também se submete a outros preceitos do sistema jurídico, como o da incidência imediata da regra processual, respeitada obviamente a validade dos atos processuais já consumados sob a égide da lei anterior. 2. Não se cogita do benefício da ultratividade, autorizado pelo art. 192 da Lei de Recuperação de Empresas (Lei 11.101/05), se a Ação Penal Falimentar foi ajuizada após a sua vigência; além desse insuperável óbice de ordem temporal, a previsão do art. 192 da LRE somente se aplica aos processos de falência e de concordata, ficando fora da sua abrangência, por ausencia de contemplação no dispositivo, os feitos de natureza criminal. Precedente da 5a. Turma: HC 86.337-RS (DJU 08.09.08). 3. À luz do que preconiza o art. 182, caput da Lei 11.101/2005, aplicável na hipótese, a prescrição dos crimes previstos na aludida LRE será regida pelo Código Penal, começando a correr do dia da decretação da falência, da concessão da recuperação judicial ou da homologação do plano de recuperação extrajudicial. 4. In casu, o Juízo da 3a. Vara da Comarca de Barueri/SP decretou a falência da empresa BRASIMAC S/A Eletrodomésticos em 23/06/2003. O ora Recorrido foi denunciado pela prática dos crimes previstos no art. 186, VI e VII, do DL 7.661/45, cuja pena máxima cominada é de 3 anos de detenção. Nos termos do art. 109, IV do CPB, a prescrição para os crimes cuja pena privativa de liberdade máxima cominada seja superior a 2 anos e não exceda a 4 anos, como no caso, é de 8 anos. Dessa forma, não há como ser reconhecida a prescrição da pretensão punitiva, uma vez que não decorreram oito anos entre a data da sentença que decretou a quebra (23/06/2003) e a data em que a denúncia foi recebida (22/06/2007) nem entre 22/06/2007 (recebimento da denúncia) e a presente data. 5. Recurso Especial conhecido e provido, a fim de restabelecer a decisão do Juízo de primeiro grau que recebeu a denúncia, determinando-se o regular prosseguimento da Ação Penal em relação ao ora recorrido, FERNANDO ALBERTO DE SANT'ANA. 1. Esse problema da aplicação da lei no tempo, quando ocorre o fenômeno da sucessão de disposições normativas, as subsequentes portando mensagem jurídica diferente ou mesmo oposta àquela inserida nas normas precedentes, sempre foi - como ainda hoje é - um tema de grande interesse teórico e prático, sobre o qual os mais eminentes autores já expenderam muitas reflexões e esmerilharam os mais afiados e especializados argumentos. 2. Tal questão assume peculiaridades ainda mais relevantes quando se está diante de um caso penal, em que a tradição do Direito Brasileiro recomenda a aplicação da lei nova - se mais benéfica - ou da lei antiga - se mais favorável à pessoa acusada ou processada; nessa hipótese (de aplicação da lei antiga) dá-se o fenômeno conhecido como ultratividade, assegurando-se, excepcionalmente, a eficácia da norma legal proscrita, em face do valor mais elevado com que se depara o Juiz, qual seja, o de mitigar o rigor da lei penalizadora; essa respeitável tradição tem, como se sabe, assento constitucional incontornável (art. 5o., XL da CF) e remontam as suas raízes às lições mais conspícuas dos Juristas romanos clássicos que afirmavam in poenalibus causis benignius interpretandum est - nas causas penais deve-se interpretar (a lei) da forma mais benigna. 3. No presente feito se cogita da possível aplicação ultrativa dos arts. 103 a 113 do DL 7.661/45 (antiga Lei de Falências), que previa a realização de inquérito judicial prévio à instauração da Ação Penal Falimentar, bem como exigia fundamentação na decisão do Juiz Criminal que recebesse a denúncia respectiva, o que foi abolido pelo art. 187 da Lei 11.101/05 (Lei de Recuperação de Empresas), que prevê rito simplificado para a promoção desse tipo de ação penal, estabelecendo o seu ajuizamento imediato pelo Ministério Público, se verificar a ocorrência de qualquer crime previsto nessa mesma lei; a controvérsia mais se agudiza sobretudo em razão de o art. 192 da Lei 11.101/05 excluir da sua incidência os processos de falência ou de concordata ajuizados antes da sua entrada em vigor, criando a dúvida sobre se também se aplica aos feitos de natureza criminal. 4. Ressalte-se que o art. 2o. do Código de Processo Penal diz expressamente que a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior, e que a Ação Penal Falimentar de que se cuida neste Recurso Especial foi ajuizada no ano de 2007, posteriormente, portanto, à entrada em vigor da Lei 11.101/05, que vige desde 9 de junho de 2005, e do seu sobredito art. 192, o que em princípio bastaria para se concluir que essa lei tem aplicabilidade ao caso em exame, ou seja, é por ela que se regem todas as relações jusprocessuais pertinentes a este feito, não se fazendo exigíveis, dest´arte, o inquérito judicial que era previsto nos arts. 103 a 113 do DL 7.661/05 e a fundamentação rigorosa da decisão judicial que recebe a denúncia. 5. Ademais disso, se ainda remanescer o problema de saber se o feito criminal falimentar foi regularmente instaurado, convém assinalar que o art. 192 da Lei 11.101/05 não se aplica aos feitos falimentares criminais, mas somente aos feitos cíveis dessa espécie, bastando ver que a redação desse dispositivo traz a indicação segura para a solução do possível impasse, porquanto alude aos processos de falência ou de concordata, o que aponta estarem fora da sua abrangência os processos criminais. 6. Registre-se que esse entendimento já foi afirmado pela 5a. Turma do STJ, no julgamento do HC 86.337-SP, de minha relatoria (DJ 08/09/2008), que restou assim ementado: HABEAS CORPUS PREVENTIVO. CRIME FALIMENTAR (ART. 186, VI E 188, III DO DECRETO-LEI 7.661/45). TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA E INÉPCIA DA DENÚNCIA NÃO EVIDENCIADAS. PROCEDIMENTO REGULADO PELA LEI 11.101/05. DESNECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO DO DESPACHO DE RECEBIMENTO DA DENÚNCIA, NOS TERMOS DO ART. 185 DA NOVEL LEGISLAÇÃO. ORDEM DENEGADA. 1. Na hipótese, ao contrário do que afirma a impetração, a denúncia, como ofertada nos presentes autos, atende aos requisitos legais, relatando de forma clara e objetiva a conduta de cada um dos denunciados e suas conseqüências. 2. Na nova Lei de Falências (Lei 11.101/05) não há qualquer referência à necessidade de fundamentação do despacho de recebimento da denúncia por crime falimentar, ao contrário do que ocorria na antiga legislação (art. 109, § 2o. do Decreto-Lei 7.761/45), que inspirou a Súmula 564 do colendo STF (A ausência de fundamentação do despacho de recebimento da denúncia por crime falimentar enseja nulidade processual, salvo se já houver sentença condenatória). 3. O caput do art. 192 da Lei 11.101/05 apenas afastou a aplicação da novel legislação nos processos de falência ou de concordata de natureza civil ajuizados anteriormente ao início de sua vigência, que deverão ser concluídos nos termos do Decreto-lei 7.661, de 21 de junho de 1945; dessa forma, os processos concernentes a crimes falimentares passaram a ser regulados imediatamente pelo procedimento específico da Lei 11.101/05, que dispensou a motivação do despacho de recebimento da denúncia, razão pela qual não merece acolhida a tese de nulidade aventada. 4. O trancamento de Ação Penal por meio de Habeas Corpus, conquanto possível, é medida de todo excepcional, somente admitida nas hipóteses em que se mostrar evidente, de plano, a ausência de justa causa, a inexistência de elementos indiciários demonstrativos da autoria e da materialidade do delito ou, ainda, a presença de alguma causa excludente de punibilidade, circunstâncias não evidenciadas no caso concreto. No ponto, para a acolhida da pretensão, indispensável o exame aprofundado do conjunto fático-probatório, providência inadmissível em HC, cujo rito célere exige prova pré-constituída do direito alegado. 5. Parecer do MPF pela denegação da ordem. 6. Ordem denegada. 7. Nesse contexto, ao decidir de forma contrária ao que ora consignado, ou seja, pela aplicabilidade do DL 7.661/45 na ação penal falimentar em tela, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo violou os dispositivos invocados nas razões recursais, não tendo a eles conferido correta exegese, de modo que deve ser restabelecida a decisão de primeiro grau que recebeu a denúncia, nos moldes da Lei 11.101/2005. 8. Conhecido o Recurso Especial, é imperioso, no presente caso, aplicar o direito à espécie, ex vi do art. 257 do RISTJ, e examinar se teria ocorrido, ou não, a prescrição da pretensão punitiva estatal. 9. À luz do que preconiza o art. 182, caput da Lei 11.101/2005, aplicável na hipótese, a prescrição dos crimes previstos na aludida Lei de Recuperação de Empresas será regida pelo Código Penal, começando a correr do dia da decretação da falência, da concessão da recuperação judicial ou da homologação do plano de recuperação extrajudicial. 10. In casu, o Juízo da 3a. Vara da Comarca de Barueri/SP decretou a falência da empresa BRASIMAC S/A Eletrodomésticos em 23/06/2003. O ora Recorrido foi denunciado pela prática dos crimes previstos no art. 186, VI e VII, do DL 7.661/45, cuja pena máxima cominada é de 3 anos de detenção. Nos termos do art. 109, IV do CPB, a prescrição para os crimes cuja pena privativa de liberdade máxima cominada seja superior a 2 anos e não exceda a 4 anos, como no caso, é de 8 anos. Dessa forma, não há como ser reconhecida a prescrição da pretensão punitiva, uma vez que não decorreram oito anos entre a data da sentença que decretou a quebra (23/06/2003) e a data em que a denúncia foi recebida (22/06/2007) nem entre 22/06/2007 (recebimento da denúncia) e a presente data. 11. Sendo assim, conheço do Recurso Especial e dou-lhe provimento, a fim de restabelecer a decisão do douto Juízo de primeiro grau que recebeu a denúncia e determinar o prosseguimento da Ação Penal em relação ao ora recorrido, FERNANDO ALBERTO DE SANT'ANA. 12. É como voto.