Inteiro teor - REsp 1315606

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RECURSO ESPECIAL Nº 1.315.606 - SP (2012/0059158-7) RECORRENTE : DORCA DE SOUZA ALMEIDA E OUTROS ADVOGADO : JOSÉ EDUARDO MENDES - DEFENSOR PÚBLICO E OUTROS RECORRIDO : ANTÔNIO CARLOS SILVA DE ALMEIDA E OUTRO ADVOGADO : JOÃO PAULO HECKER DA SILVA E OUTRO(S) RELATÓRIO O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator): 1. Antonio Carlos Silva de Almeida e Clóvis Washington Silva de Almeida ajuizaram ação reivindicatória em face de Dorca de Souza Almeida (segunda mulher do de cujus), Luiz Wilson de Souza Almeida, Silvio Ulisses de Souza Almeida e Solange Eglê de Souza Almeida (filhos desse segundo casamento), aduzindo que são os legítimos proprietários do imóvel reivindicado, pois, até 1° de setembro de 1997, o bem estava gravado com ônus do usufruto em nome do pai dos autores, Antônio Polycarpo de Almeida, sendo que, após sua morte, o usufruto fora cancelado, ficando os direitos de propriedade dos autores livre de quaisquer limitações. Afirmam que o imóvel fora colacionado no inventário, tendo o bem sido definitivamente outorgado aos autores, mas que, mesmo assim, não conseguiram obter a posse deste, tendo em vista que os réus continuam ocupando-o injustamente. O magistrado de piso julgou procedente em parte o pedido, haja vista que os réus não teriam título hábil a justificar a ocupação do imóvel. Interposta apelação, o Tribunal de Justiça de São Paulo negou provimento ao recurso, nos termos da seguinte ementa: AÇÃO REIVINDICATÓRIA - Demonstração inequívoca de título dominial em favor dos autores - Julgamento antecipado da lide - Possibilidade - Ausência de cerceamento defensório - Procedência da ação - Cabimento - Ausência de invocação, pelos réus, da posse ad usucapionem - Corré viúva de pessoa que já havia doado o imóvel aos filhos de casamento anterior, ora autores, e que dispunha apenas da condição de usufrutuário, quando de seu falecimento - Descabimento do invocado direito de habitação porque o bem já não integrava o patrimônio do cônjuge falecido - Ausência de violação ao direito constitucional de moradia - Recurso improvido. (fls. 445-457) Irresignados, interpõem recurso especial com fundamento na alínea "a" do permissivo constitucional, por vulneração aos arts. 739, I, 1.611, § 2°, e 1.722, parágrafo único, do CC/1916. Aduzem que, ao contrário do decidido, o imóvel integrava o patrimônio existente à época do falecimento, constituindo parte da legítima. Sustentam que deve ser reconhecido o direito real de habitação vidual, pois o imóvel foi inventariado como único bem daquela natureza, conforme exigência do art. 1.611, § 2°, do CC/1916, sendo que, em se tratando de adiantamento da legítima, "deve-se concluir que o objeto da doação nada mais é do que parte integrante desta". Alegam que, ao colacionar as doações feitas aos descendentes para cálculo da legítima, a norma pretendeu estabelecer a igualdade entre os quinhões do monte partível e, portanto, o imóvel deve ser considerado para fins do direito real de uso. Argumentam que o sistema pretendeu garantir o direito de habitação ao cônjuge sobrevivente no único imóvel de natureza residencial que venha a compor a herança, exatamente como a situação dos autos. Contrarrazões ao especial às fls. 509-520, apontando que, além da incidência das súmulas 7 do STJ, 282 e 284 do STF, no mérito, não é possível que imóvel de terceiros possa vir a ser onerado com o direito real de habitação, bem como que "a cônjuge sobrevivente não cumpriu com as obrigações inerentes à habitação, tais como conservação da coisa habitada (art. 729, in fine) e custeio das despesas ordinárias de conservação da coisa, bem como impostos reais devidos pela posse (art. 733, incs. I e II)". O recurso recebeu crivo de admissibilidade positivo na origem (fl. 533). É o relatório. RECURSO ESPECIAL Nº 1.315.606 - SP (2012/0059158-7) RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO RECORRENTE : DORCA DE SOUZA ALMEIDA E OUTROS ADVOGADO : JOSÉ EDUARDO MENDES - DEFENSOR PÚBLICO E OUTROS RECORRIDO : ANTÔNIO CARLOS SILVA DE ALMEIDA E OUTRO ADVOGADO : JOÃO PAULO HECKER DA SILVA E OUTRO(S) EMENTA RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. SUCESSÕES. CÓDIGO CIVIL DE 1916. ANTECIPAÇÃO DA LEGÍTIMA. DOAÇÃO COM CLÁUSULA DE USUFRUTO. CÔNJUGE SOBREVIVENTE QUE CONTINUOU NA POSSE. IMÓVEL. COLAÇÃO DO PRÓPRIO BEM (EM SUBSTÂNCIA). DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. INOCORRÊNCIA. 1. A colação é obrigação imposta aos descendentes que concorrem à sucessão comum, por exigência legal, para acertamento das legítimas, na proporção estabelecida em lei, sob pena de sonegados e, consequentemente, da perda do direitos sobre os bens não colacionados, voltando esses ao monte-mor, para serem sobrepartilhados. 2. A doação é tida como inoficiosa, caso exceda a parte a qual pode ser disposta, sendo nula a liberalidade deste excedente, podendo haver ação de anulação ou de redução. Da mesma forma, a redução será do bem em espécie e, se esse não mais existir em poder do donatário, se dará em dinheiro (CC, art. 2.007, § 2°). 3. É possível a arguição de direito real de habitação ao cônjuge supérstite em imóvel que fora doado, em antecipação de legítima, com reserva de usufruto. 4. Existem situações em que o imóvel poderá ser devolvido ao acervo, volvendo ao seu status anterior, retornando ao patrimônio do cônjuge falecido para fins de partilha, abrindo, a depender do caso em concreto, a possibilidade de reconhecimento do direito real de habitação ao cônjuge sobrevivente. 5. Na hipótese, a partilha dos bens fora homologada em 18/5/1993, não havendo alegação de nulidade da partilha ou de resolução da doação, além de se ter constatado que o imóvel objeto de reivindicação não era o único bem daquela natureza a inventariar. 6. Recurso especial não provido. VOTO O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator): 2. A discussão principal é saber se pode ser reconhecido o direito real de habitação ao cônjuge supérstite em imóvel que fora doado pelo falecido aos filhos, em antecipação de legítima, com reserva de usufruto. O Tribunal de origem, mantendo a sentença, afastou qualquer direito de uso da viúva: Inicialmente, cumpre esclarecer que o imóvel sub judice foi doado aos autores-apelados pelo genitor deles, Antonio Polycarpo de Almeida, em 21/08/1953 (fls. 131/134), com reserva de usufruto. Os autores são filhos do primeiro casamento do doador. Havendo falecido este último em 18/03/1971, o imóvel foi objeto de colação em inventário, cuja homologação de partilha se deu em 18/05/1993 (fl. 35). Ressalte-se, ainda, que a corré-apelante Dorca de Souza era casada com o doador do imóvel, sendo os demais corréus filhos do casal. A doação do bem foi realizada antes do casamento do doador, que se deu em 03/09/1953 (fl. 150). Sustentam os réus-apelantes que o imóvel sempre lhes serviu de moradia, desde quando vivo o doador até mesmo após o seu falecimento. Aduzem que a posse do imóvel é justa porque a viúva Dorca de Souza possui direito de habitação, por força do disposto no § 2°, do artigo 1.611 do Código Civil/1916, bem como o direito de moradia, previsto no artigo 6° da Lei Maior. Pois bem. Como é assente na doutrina e jurisprudência, a ação reivindicatória pressupõe um proprietário não possuidor que reivindica a coisa em face de um possuidor, não proprietário, desprovido de título apto a contrapor-se ao apresentado pelo reivindicador. De tal sorte que, uma vez comprovado o domínio do bem pelo autor, salvo quando alegada e demonstrada pelo réu a prescrição aquisitiva ad usucapionem, a seu favor, a procedência da ação reivindicatória, em linha de principio, será inegável. Nesse sentido, primeiramente, cabe menção ao disposto no artigo 1.228 do Código Civil, que corresponde ao que dispunha o artigo 524 do Código Civil/1916: "O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha." Outrossim, o mesmo diploma legal dispõe, no artigo 1.245, caput, que: "Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.", acrescentando o seu § 2° que: "Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel." Esse entendimento está sufragado em ampla orientação pretoriana e também na doutrina. Na jurisprudência, inclusive do Colendo Superior Tribunal de Justiça, conferir REsp 274.263- 60, do qual foi Relator o Ministro Castro Filho, j. 07.11.02, trazido à colação no decisum monocrático. Neste Tribunal, conferir Apelação Cível n. 484.565-4/3-00, da Comarca de Guarulhos, de que foi Relator o Desembargador Guimarães e Souza. Na doutrina, conferir J.M. Carvalho Santos, in "Código Civil Brasileiro Interpretado", vol. 7, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 7' edição, p. 281; e, Carlos Roberto Gonçalves, in "Sinopses Jurídicas", Direito das Coisas, Ed. Saraiva, p. 82/83. Presentemente, contudo, a tese básica dos apelantes para a defesa da posse justa, como de início referido, ampara-se fundamentalmente no direito real de habitação e moradia da viúva corré Dorca de Souza, e não em usucapião. Conforme predominante orientação jurisprudencial, a prescrição aquisitiva, ou usucapião, é oponível como tese de defesa em face da ação reivindicatória, devendo ser deduzida em sede de contestação (REsp 35.145-MO, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, julgamento 12.08.96). No caso em tela, no entanto, nenhuma menção restou deduzida na defesa dos apelantes, especificamente sobre a prescrição aquisitiva a seu favor, decorrente da posse por mais de 20 (vinte) anos, ou por outro prazo que julgasse adequado. Ora, não havendo essa tese dominial por parte dos réus- apelantes em contraposição ao título dominial apresentado pelos autores-apelados, e, ainda, não havendo demonstração de posse justa, a procedência da ação reivindicatória mostra-se inarredável. Nesse sentido, com efeito, no que concerne ao sustentado direito real de habitação, atribuído ao cônjuge sobrevivente, dispunha § 2', do artigo 1.611, do Código Civil/1916 (aplicável à espécie, com correspondência atual no artigo 1.831, abrangendo, na nova redação, qualquer espécie de regime de bens), não possui aplicação no caso dos autos. Referido dispositivo legal previa que:' "Ao cônjuge sobrevivente, casado sob regime de comunhão universal, enquanto viver e permanecer viúvo, será assegurado, sem prejuizo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habita ção relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar. " No caso em tela, contudo, o bem imóvel em discussão havia sido doado antes mesmo do segundo casamento, de modo que o doador, à época de seu falecimento, não mais dispunha de título dominial, mas apenas do direito ao usufruto. Assim sendo, a corré Dorca de Souza ficou viúva, não do proprietário do imóvel onde residia a família, mas do usufrutuário do bem, não se aplicando o direito de habitação ao cônjuge sobrevivente de usufrutuário. Nos termos do inciso I, do artigo 739 do Código Civil/1916 (com atual correspondência no inciso I, do artigo 1.410 no diploma substantivo vigente), o usufruto se extingue com a morte do usufrutuário. Desse modo, havendo sido doado o bem, e havendo falecido o doador-usufrutuário, a permanência da viúva e de seus filhos no imóvel doado já não mais se justifica. É que o usufruto não é hábil a conferir o direito de habitação, pois este pressupõe a existência de um bem integrante do patrimônio do cônjuge falecido, e, no caso dos autos, o imóvel havia sido doado aos filhos do primeiro casamento do doador, de modo que à época do seu falecimento, como referido, já não mais era o seu proprietário, mas apenas usufrutuário. Nessa ordem de idéias, a posse dos apelantes, após o falecimento do usufrutuário, não encontra foros de legalidade, pois não há justo titulo que a ampare. Em caso parelho, julgado neste Tribunal, restou até mesmo assentada a possibilidade de caracterização de esbulho possessório - na hipótese de haver a respectiva notificação para desocupação - quando o direito de habitação invocado não se revela cabível, em razão de o imóvel já não mais integrar o patrimônio partilhável dos bens deixados pelo cônjuge falecido: [...] Por conseguinte, o invocado direito de habitação não sendo aplicável à hipótese sub judice também não serve para justificar a posse dos apelantes no imóvel. No concernente à sustentação no sentido de que o bem doado foi inventariado, nos termos da partilha xerocopiada aos autos, e que poderia ser considerado patrimônio existente à época do falecimento, melhor sorte não colhem os apelantes. Nesse sentido, com efeito, importa considerar que o imóvel foi levado à colação no inventário dos bens deixados pelo doador, para fins de conferência da legítima dos herdeiros e verificação do valor da partilha, de modo que, a rigor e tecnicamente, não integrava o patrimônio do de cujus, diante da doação. Quanto ao sustentado direito constitucional de moradia, previsto no artigo 6° da Lei Maior, também não pode servir de fomento jurídico para defender a posse dos apelantes e arredar a pretensão reivindicatória. A esse propósito, é de se ressaltar que o aludido direito à moradia, na forma prevista constitucionalmente, é oponível às autoridades públicas. Todavia, ainda que assim não fosse, presentemente não se vislumbra qualquer violação do aludido direito constitucional, pois os apelados estão exercendo legitimamente os poderes advindos da propriedade, a qual lhes confere os direitos de usar, gozar e dispor da coisa, bem como de reaver o bem de quem injustamente o detenha (artigo 524 do Código Civil). Nesse âmbito de idéias, não havendo alegado os autores-apelantes posse ad usucapionem, vale dizer, com animus domini, e, considerando que o bem foi doado, restando somente o usufruto de quem veio a falecer, a posse exercida por eles não se justifica, assemelhando-se à detenção, ou à mera tolerância dos proprietários. Assim, não há como conferir foros de juridicidade à posse dos apelantes, se contraposta com o titulo dominial do imóvel, matriculado em nome e como propriedade dos autores, e, em assim sendo, não há como, técnica e juridicamente, negar-se vigência às disposições legais do Código Civil de 1916, já mencionados, devendo prevalecer o título de propriedade formalmente registrado na circunscrição imobiliária respectiva, porquanto não restou desconstituído de nenhuma forma. Ao fim e ao cabo. Não se pode dizer que os réus- apelantes estejam desguarnecidos de meios para adquirir outra moradia eis que nos termos da xerocópia da partilha acostada aos autos, receberam outros bens e valores em dinheiro, os quais podem ser empregados de algum modo para a aquisição de outro imóvel residencial. Isto posto, afastada a prefacial, nega-se provimento ao apelo, nos termos e pelos fundamentos constantes do presente voto condutor do acórdão. 3. O legislador brasileiro, atento ao direito social de moradia, consagrou o direito real de habitação ao cônjuge sobrevivente e, no exercício de ponderação de valores, mitigou os poderes inerentes à propriedade do patrimônio herdado. O direito real de habitação é ex vi legis, decorrente do direito sucessório (CC, art. 1.831) e, portanto, exercitável desde a abertura da sucessão (REsp n. 1.125.901/RS, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, DJe 6/9/2013), sendo que, a partir desse momento, tem o cônjuge/companheiro sobrevivente instrumentos processuais para garantir o exercício do direito de habitação, inclusive por meio de ação possessória (REsp 1.203.144/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 27/05/2014, DJe 15/08/2014). No âmbito do Código Civil de 1916, o art. 1.611, § 2°, dispunha: Ao cônjuge sobrevivente, casado sob regime de comunhão universal, enquanto viver e permanecer viúvo, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela natureza a inventariar. O art. 1.831 do CC/2002, em acréscimo qualitativo (agora, independentemente do regime de bens), teve redação muito semelhante, ao prever que "ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar". Nessa ordem de ideias, prendem-se os recorrentes à interpretação da parte final do dispositivo legal - "imóvel destinado à residência da família" e "único bem daquela natureza a inventariar" -, para tentar ver assegurado o direito real de habitação da viúva. No tocante especificamente a esse comando legal, assinala a doutrina que: [...] a parte final do artigo não pode ser aplicada literalmente. Estabelece que haverá o direito real de habitação no imóvel residencial se for o único dessa natureza a inventariar. A limitação ao único imóvel a inventariar é resquício do Código anterior, em que o direito real de habitação era conferido exclusivamente ao casado pela comunhão universal. Casado por esse regime, o viúvo tem meação sobre todos os bens. Havendo mais de um imóvel, é praticamente certo que ficará com um deles, em pagamento de sua meação, o que lhe assegura uma moradia. Nessa hipótese, não tem necessidade do direito real de habitação. No atual Código, porém, estendido esse direito a todos os regimes de bens, não há sentido, por exemplo, em negar o direito real de habitação ao caso pela separação de bens, se houver mais de um imóvel residencial a inventariar. Com mais razão deve lhe ser assegurada tal proteção se houver mais de um imóvel. Como também observa esse jurista, com inteira razão, o viúvo, na hipótese de vários imóveis, não poderá escolher sobre qual pretende fazer recair o direito real, embora possa exigir um que seja de conforto similar àquele em que morava [...] (ANTONINI, Mauro. Código civil comentado. Coordenador Cezar Peluso, Baureri, SP: Manole, 2014, p. 2.056) Ora, como sabido, a ratio do instituto é a de reservar ao cônjuge supérstite, independentemente da participação que lhe caiba na herança, o direito gratuito de moradia, sendo exceção à garantia dos herdeiros necessários, de pleno direito, a ter metade dos bens da herança (legítima). Deveras, tipifica-se o direito real de habitação como "verdadeiro legado ex lege. É legado porque recai sobre bem determinado. É ex lege porque independe do negócio jurídico do testamento, integrando capítulo da sucessão legítima" (LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código civil comentado. Coordenador Cezar Peluso, Baureri, SP: Manole, 2014, p. 1371). 4. No presente caso, a recorrente Dorca figura como cônjuge sobrevivente, casada sob regime de comunhão universal, e que, independente de sua participação que lhe cabia na herança, almeja o reconhecimento de direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, por ser esse o único bem daquela natureza a inventariar. É bem verdade que todos os requisitos exigidos no proêmio do Código Civil, para o reconhecimento dessa proteção ao cônjuge recorrente, estão presentes. Nesse sentido, aliás: CIVIL. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. IMÓVEL. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. 1. Ao cônjuge sobrevivente, observadas as prescrições legais, é assegurado o direito real de habitação relativamente ao único imóvel destinado à residência da família, a teor do disposto no § 2º, do art. 1.611, do Código Civil de 1916. 2. Neste contexto, recusa o entendimento pretoriano, a extinção do condomínio pela alienação do imóvel a requerimento do filho, também herdeiro. 2. Recurso conhecido e provido para restabelecer a sentença julgando improcedente a ação de extinção de condomínio. (REsp 234.276/RJ, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 14/10/2003, DJ 17/11/2003, p. 329) Ocorre, no entanto, que a sentença e o acórdão recorrido entenderam que não haveria falar em direito de habitação, uma vez que o imóvel em discussão havia sido doado antes mesmo do segundo casamento, de modo que o doador, à época de seu falecimento, não mais dispunha de título dominial, mas apenas direito ao usufruto, instituto que não é hábil a conferir o direito de habitação, justamente porque o bem não seria mais integrante do patrimônio do de cujus. Deveras, apesar de a doação realmente transferir o patrimônio de determinado bem do doador para outrem (CC, art. 538), não se pode olvidar que, para fins sucessórios, a doação de ascendentes a descendentes importa adiantamento do que lhes cabe por herança (CC, art. 544 - CC/16, art.1.171), e, por conseguinte, os referidos bens ficariam afetos a consequências posteriores, aferidas no momento da abertura da sucessão, e que podem vir a acarretar, inclusive, a nulidade do mencionado negócio jurídico. Com efeito, como sabido, a colação é obrigação imposta aos descendentes que concorrem à sucessão comum, por exigência legal, para acertamento das legítimas, na proporção estabelecida em lei (CC, art. 2002 - CC/16, art.1.786/1.785), sob pena de sonegados e, consequentemente, da perda do direitos sobre os bens não colacionados (CC, art. 1.992 - CC/16, art.1.780), voltando esses ao monte-mor, para serem sobrepartilhados. Nesse passo, ao se computar os valores das doações feitas em adiantamento de legítima, em não se constatando, no acervo, haveres suficientes para igualar as legítimas (par conditio), os bens anteriormente doados deverão ser conferidos em espécie, resolvendo-se a doação, ou, quando deles já não disponha, pelo seu valor ao tempo da liberalidade (CC, art. 2003 - CC/16, art.1.787). No ponto, parte da doutrina clássica já destacava que a referida doação antecipava o gozo, mas não o domínio definitivo dos bens, havendo a restituição à massa de todos os efeitos anteriormente doados, verbis: Segundo lição de Carlos Maximiliano, a finalidade da colação é reconstituir o patrimônio hereditário, mediante resolução do ato benéfico. Verificando o óbito do doador, a massa hereditária deste é acrescida dos bens entregues à prole, em vida do genitor, entram esses bens no inventário, como se ainda fizessem parte do patrimônio do doador. Fica o acervo como se não tivesse ocorrido a dádiva. A doação antecipa o gozo, mas não o domínio definitivo dos bens. Acrescenta o mesmo autor que o beneficiado, recebendo a liberalidade, se obriga a devolvê-la ao acervo, por ocasião do inventário do doador. Idêntica a lição de Itabaiana, João Luís Alves, Carvalho Santos, Pinto de Toledo e Ramalho. Aliás, assim tem sido julgado. Força reconhecer, todavia, a existência de valiosas opiniões em franco antagonismo. (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, v. VI, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 281) Nesse sentido, aliás, já decidiu o STJ: CIVIL E PROCESSUAL. ACÓRDÃO ESTADUAL. NULIDADE NÃO CONFIGURADA. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE SIMULAÇÃO CUMULADA COM AÇÃO DE SONEGADOS. BENS ADQUIRIDOS PELO PAI, EM NOME DOS FILHOS VARÕES. INVENTÁRIO. DOAÇÃO INOFICIOSA INDIRETA. PRESCRIÇÃO. PRAZO VINTENÁRIO, CONTADO DA PRÁTICA DE CADA ATO. COLAÇÃO DOS PRÓPRIOS IMÓVEIS, QUANDO AINDA EXISTENTES NO PATRIMÔNIO DOS RÉUS. EXCLUSÃO DAS BENFEITORIAS POR ELES REALIZADAS. CC ANTERIOR, ARTS. 177, 1.787 E 1.732, § 2º. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. REDIMENSIONAMENTO. CPC, ART. 21. I. Não padece de nulidade o acórdão que enfrentou as questões essenciais ao julgamento da controvérsia, apenas com conclusões desfavoráveis à parte. II. Se a aquisição dos imóveis em nome dos herdeiros varões foi efetuada com recursos do pai, em doação inoficiosa, simulada, em detrimento dos direitos da filha autora, a prescrição da ação de anulação é vintenária, contada da prática de cada ato irregular. III. Achando-se os herdeiros varões ainda na titularidade dos imóveis, a colação deve se fazer sobre os mesmos e não meramente por seu valor, ao teor dos arts. 1.787 e 1.792, parágrafo 2°, do Código Civil anterior. IV. Excluem-se da colação as benfeitorias agregadas aos imóveis realizadas pelos herdeiros que os detinham (art. 1.792, parágrafo 2°). V. Sucumbência recíproca redimensionada, em face da alteração decorrente do acolhimento parcial das teses dos réus. VI. Recurso especial conhecido em parte e provido. (REsp 259.406/PR, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 17/02/2005, DJ 04/04/2005, p. 314) Em verdade, sempre houve intensa cizânia nessa questão, sendo que o atual Código Civil tentou colocar fim à discórdia, como destaca Zeno Veloso: "embora a matéria não tenha sido regulada com o devido cuidado e atenção, pode-se deduzir que o Código Civil exige que a colação se faça em valor e não em substância. Esse assunto foi objeto de uma discussão interminável, diante do Código Civil de 1916, posicionando-se os juristas em duas facções inconciliáveis" (Comentários ao código civil, v. 21, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 406). Relevante, ainda, é salientar que a doação poderá ser tida como inoficiosa, caso exceda a parte a qual poderia ser disposta, sendo nula a liberalidade desta parte excedente, podendo haver ação de anulação ou de redução para decotar as liberalidades mortis causa. Da mesma forma, a redução será do bem em espécie e, se não mais existir o bem em poder do donatário, se dará em dinheiro (CC, art. 2.007, § 2°). Assim, ao contrário do que asseverado no acórdão recorrido, percebe-se que aquela simples doação de outrora, com cláusula de usufruto, não afastou, por si só, o direito real de habitação, uma vez que, como visto, existem diversas situações em que o bem poderá ser devolvido ao acervo, volvendo o imóvel doado ao status anterior, retornando ao patrimônio do cônjuge falecido para fins de partilha e permitindo, em tese, eventual arguição de direito real de habitação ao cônjuge supérstite. 5. Na hipótese, todavia, há uma peculiariedade, pois sustentam os recorrentes - desde a contestação -, que os recorridos não teriam se desincumbido de todas as obrigações impostas no formal de partilha, haja vista que o valor devido, em razão da colação, ainda seria objeto de ação consignatória, além de aventar que "os réus foram prejudicados com a doação efetivada pelo genitor, vez que ficaram somente com lotes sem valor, distantes desta Capital e sem construção, enquanto que o imóvel reivindicado tem valor aproximado de R$ 160.000,00 (cento e sessenta mil reais), devido à metragem (332,57m2) e localização (bairro da Moóca)" (fl. 102). O acórdão recorrido, por sua vez, consignou que: a) "o imóvel sub judice foi doado aos autores-apelados pelo genitor deles, Antonio Polycarpo de Almeida, em 21/08/1953, com reserva de usufruto"; b) "Havendo falecido este último em 18/03/1971, o imóvel foi objeto de colação em inventário, cuja homologação de partilha se deu em 18/05/1993"; c) "a corré-apelante Dorca de Souza era casada com o doador do imóvel, sendo os demais corréus filhos do casal. A doação do bem foi realizada antes do casamento do doador, que se deu em 03/09/1953"; d) "o bem imóvel em discussão havia sido doado antes mesmo do segundo casamento, de modo que o doador, à época de seu falecimento, não mais dispunha de título dominial, mas apenas do direito ao usufruto";e) "o imóvel foi levado à colação no inventário dos bens deixados pelo doador, para fins de conferência da legítima dos herdeiros e verificação do valor da partilha, de modo que, a rigor e tecnicamente, não integrava o patrimônio do de cujus, diante da doação". Assim, verifica-se que a partilha dos bens já foi homologada em 18/05/1993, com a colação do imóvel objeto da discussão, sem que se aventasse que a doação fosse inoficiosa ou que não haveriam outros bens suficientes para igualar as legítimas. Ressalte-se que a doação feita pelo ascendente ao herdeiro necessário que, sem exceder, saiam de sua metade disponível, não podem ser tidas como adiantamento da legítima. Portanto, na hipótese peculiar em julgamento, não havendo nulidade da partilha ou resolução da doação, não há falar em retorno do imóvel ao patrimônio do falecido e, por conseguinte, sem respaldo qualquer alegação de eventual direito de habitação. Ademais, verifica-se que o imóvel reivindicado não foi o único bem daquela natureza a inventariar, tendo os recorrentes recebido outros, inclusive imóveis, além de crédito a título de compensação da diferença do valor dos quinhões, afastando o requisito legal de ser o único bem daquela natureza a inventariar. Além disso, em 2001, houve sentença da ação consignatória julgando procedente o pedido, para declarar extinta a obrigação dos autores no tocante à partilha (fls. 123-125). 6. Ante o exposto, ainda que por fundamentos distintos, nego provimento ao recurso especial. É o voto.