AgInt no RECURSO ESPECIAL Nº 1.359.060 - RJ (2012/0265037-3)
VOTO-VISTA
MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI: Trata-se de agravo interno interposto por Jorge Getúlio Veiga Filho contra decisão proferida pelo Ministro Raul Araújo, que negou provimento ao recurso especial interposto com base na alínea "a" do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal, em face de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, assim ementado (e-STJ, fls. 2.140-2.141):
INVENTÁRIO LITIGIOSO - DIVISÃO DE BENS ENTRE HERDEIRO E COMPANHEIRA DO DE CUJUS - CUMPRIMENTO DE DECISÃO PROFERIDA EM OUTRO PROCESSO - PRELIMINARES REJEITADAS - Não se submete ao contraditório a juntada de cópia do acórdão proferido em outro processo, pois tal documento não tem caráter probatório e apenas retrata a decisão que foi prolatada no respectivo recurso. Ausência de prejuízo ao recorrente. Não determina sobrepartilha a pendência de controvérsia judicial em fase de recurso extremo, não dotado de efeito suspensivo. Submete-se ao alvedrio judicial a decisão que desconsidera manifestação de perito formulada nos autos, pois toda produção probatória é destinada ao juiz da causa e a este cumpre avaliar o nível técnico do trabalho realizado, ao qual, aliás, não fica o julgador adstrito. Tal decisão não carece de fundamentação. Não deveria o Juízo ouvir quaisquer das partes a respeito, pois tal deliberação se deu a favor do processo e não em desfavor de qualquer das partes. Determinação de realização de nova perícia, diante de um trabalho técnico que se revela deficiente para disquisição judicial. Não há falar em incompetência do Juízo orfanológico ao reconhecer a [in] validade da compra e venda de cotas societárias, não sendo caso de remessa das partes às vias ordinárias, porquanto a solução da questão controvertida não encontra quaisquer dos óbices elencados no art. 984, fine, do Código de Processo Civil, constituindo tema de pronta cognição com os elementos probatórios existentes nos autos, à luz dos preceitos normativos aplicáveis à espécie. Precedentes judiciais. Não parece exíguo o prazo de dez dias que o Juízo fixou ao inventariante para relacionar os bens integrantes do acervo hereditário, uma vez que essa providência é imanente às funções a serem desempenhadas pelo encarregado da inventariança e a impossibilidade da respectiva atuação pode mesmo indiciar incapacidade de investidura do munus processual. Não padece de ilegalidade a decisão que determinou ao inventariante que arrolasse as cotas de capital objeto da alteração contratual de empresa, porque referida alteração importou cessão de cotas do de cujus para o inventariante e somente foi levada a registro após óbito daquele, o que impede a produção de efeitos contra terceiros, no caso a agravada, companheira do falecido. Ademais, houve reconhecimento de união estável entre a agravada e o obituado. Improvimento ao recurso.
Embargos de declaração rejeitados (e-STJ, fls. 2.186).
Alega o agravante que não cabe ao juízo do inventário decidir sobre a validade do contrato de compra e venda que celebrou como seu falecido pai para a aquisição de parte das cotas sociais da empresa Sapucaia de Máquinas e Motores Ltda, na qual figuravam como os únicos sócios, em razão de se tratar de questão de alta indagação que demanda "dilação probatória e amplo contraditório" a ser dirimida, portanto, pelas vias ordinárias, em ação anulatória do referido instrumento particular, medida judicial que afirma ter sido ajuizada por Nelly Jamal Veiga, ex-companheira do de cujus e ora recorrida, muito tempo antes de ter sido proferida a decisão confirmada pelo acórdão impugnado no presente recurso, e que ainda se encontra em tramitação no juízo cível.
Diante disso, sustenta que o acórdão recorrido, ao confirmar decisão do Juízo de Órfãos e Sucessões, que declarou inválida a transferência das cotas, sob o fundamento de que, segundo alega, o negócio jurídico teria por base preço irrisório, violou os arts. 984 do Código de Processo Civil de 1973; 104,105 e 147, inc. II, do Código Civil de 1916, porque o exame dessa questão "já determina, a necessidade de avaliação da sociedade, seu patrimônio e obrigações, para estabelecimento do real valor das cotas negociadas", fatos que demandam dilação probatória não admissível no procedimento do inventário e determina o ajuizamento de ação anulatória da competência do juízo cível.
Indica ainda, ofensa aos arts. 32, inc. II e 36, da Lei 8.934/1994; 33 do Decreto 1.800/1996; 135 do Código Civil de 1916, porque a circunstância de o referido contrato de compra e venda ter sido registrado na junta comercial em 23.8.1996, depois do óbito do vendedor ocorrido em 12.7.1996, não enseja a nulidade do negócio jurídico, mas impede a produção de seus efeitos contra terceiros, de modo que a "alteração contratual é plenamente eficaz entre seus signatários a partir de sua celebração, em 10.01.96, produzindo entre eles todos os seus efeitos, especialmente quanto à cessão das cotas, independentemente de seu arquivamento da Junta Comercial".
Observa, nesse sentido, que não se pode vislumbrar a ineficácia do contrato de cessão de cotas em razão de seu registro ter sido feito em data posterior ao falecimento do cedente. E isso porque o art. 135 do Código Civil de 1916 estabelece que o próprio instrumento particular prova as obrigações convencionadas entre os subscritores da avença, ficando apenas a produção de efeitos contra terceiros condicionada à transcrição no registro público.
Acrescenta que não existe norma legal determinando que a morte de um dos signatários do instrumento de compra e venda de cotas sociais de empresa, antes de que seja ele arquivado na junta comercial, tenha como consequência a perda da eficácia da correspondente alteração no atos constitutivos e, portanto, "a alteração contratual produziu todos os seus efeitos entre o inventariado (cedente) e seu filho (cessionário), inclusive quanto à transferência das cotas do capital da Sapucaia a partir de sua celebração em 10.01.96".
E conclui: "(i) a partir de 10.01.96, a alteração contratual produziu todos os seus efeitos entre os seus signatários, (ii) o falecimento do cedente (inventariado) não é causa de cessação da eficácia da alteração contratual, e (iii) a partir de 23.08.96, a alteração contratual produziu todos os seus efeitos em relação a terceiros, inclusive o Espólio recorrido".
O Relator do presente agravo interno, Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região), confirmou os termos da decisão agravada quanto ao não conhecimento do especial em relação às apontadas violações a dispositivos da Constituição; rejeição da alegação de ofensa ao art. 535 do CPC/1973 e negativa de prestação jurisdicional, bem assim à preliminar de cerceamento de defesa, deduzida sob a alegação de violação ao art. 398 do CPC/1973.
No mérito, considerou que o entendimento do acórdão recorrido encontra-se em consonância com a orientação da Quarta Turma do STJ, que, ao examinar o RESP 450.951/DF, concluiu que o juízo do inventário tem competência para apreciar todas as questões de direito e de fato comprovado nos autos, devendo remeter às vias ordinárias apenas questões de alta indagação, assim entendidas as que não estiverem comprovadas nos autos do inventário.
Diante disso, assinalou que rever a conclusão do acórdão recorrido de que os autos do inventário estão instruídos com os elementos necessários ao exame da validade do instrumento de transferência de cotas sociais, de modo que acolher a alegação de que se trata de matéria de alta indagação que exige dilação probatória demandaria o reexame do conjunto fático-probatório dos autos, procedimento vedado no âmbito do recurso especial (Súmula 7/STJ).
Acrescentou que as instâncias de origem se limitaram a declarar ineficaz o documento de transferência das cotas sociais em relação à ex-companheira do falecido, em razão de essa alteração no ato constitutivo da empresa somente ter sido levada a registro na junta comercial depois do falecimento do cedente, tema que, na sua compreensão, não se confunde com a anulação desse negócio jurídico em discussão em ação própria, em trâmite no Juízo da 12ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro/RJ, que, portanto, não impede que as cotas sociais em litígio sejam arroladas nos autos do inventário.
Ressaltou, por fim, que o arquivamento no registro público da alteração nos atos constitutivos da empresa que formalizou a venda da cotas sociais ocorreu após o óbito do cedente e, portanto, não produziu efeitos contra terceiros, no caso, sua ex-companheira, nos termos da literalidade do art. 135 do Código Civil de 1916.
Pedi vista.
II
Observo, inicialmente, que o acórdão recorrido foi publicado antes da vigência da Lei 13.105 de 2015, estando o recurso sujeito aos requisitos de admissibilidade do Código de Processo Civil de 1973, conforme Enunciado Administrativo STJ 2/2016.
Acompanho o relator quanto ao não conhecimento do recurso especial, em relação aos arts. 5º, inc. LV e 93, inc. IX, da Constituição Federal, por não ser a via adequada para o exame de suposta violação a dispositivo constitucional.
Quanto ao art. 535 do CPC/1973, entendo que a questão foi efetivamente decidida pelo acórdão recorrido, embora de forma sumária e, data maxima venia, superficial, de modo que também eu rejeito a alegação de negativa de prestação jurisdicional.
No tocante à alegação de cerceamento do direito de defesa, em razão de não ter sido o recorrente intimado da juntada do acórdão proferido nos embargos infringentes na ação de reconhecimento de união estável, como determina o art. 398 do CPC/1973, observo que o ora recorrente figurou como parte no referido feito e interpôs os embargos infringentes, tendo, portanto, pleno conhecimento desse julgamento e não indicou prejuízo algum que teria suportado pela ausência de oportunidade de sobre ele se manifestar.
Diante disso, tem aplicação o princípio segundo qual não se declara nulidade sem prejuízo dela decorrente e, assim, também acompanho o relator, no ponto.
III
No mérito, anoto, inicialmente, que as instâncias de origem, soberanas no exame das provas dos autos e a partir de fatos incontroversos entre as partes, delinearam que o ora agravante e seu falecido pai celebraram contrato de compra e venda das cotas do capital social subscritas pelo último na empresa Sapucaia de Máquinas e Motores Ltda, no dia 10.1.1996, mas a transcrição dessa alteração no ato constitutivo da empresa perante a Junta Comercial do Rio de Janeiro somente foi efetivada em 23.8.1996, quando transcorridos mais de 40 dias do óbito do cedente, ocorrido no dia 12.7.1996.
Aplicando, pois, o princípio de que a posse e o domínio dos bens pertencentes ao falecido são transmitidos aos herdeiros legítimos e testamentários no momento da abertura da sucessão (art. 1.572 do Código Civil de 1916 em vigor na época dos fatos, reproduzido no art. 1.784 do CC/2002), o Juízo de Direito da 8ª Vara de Órfãos e Sucessões da Comarca do Rio de Janeiro/RJ declarou, nos autos do processo de inventário, a ineficácia do referido instrumento em relação a terceiros, no caso, a ex-companheira do morto, mediante a decisão juntada às fls. 52-55, integralmente confirmada pelo acórdão recorrido.
Com efeito, destaco as seguintes passagens dessa decisão (fl. 53):
No tocante à pendente questão que vem sendo ventilada e objeto de discussão desde 1997, atinente à postulada declaração de ineficácia e nulidade do documento de fls. 03/06, junto nos autos em apenso da Apuração de Haveres, que consubstanciou a transferência das cotas da Sociedade Sapucaia de Máquinas e Motores Ltda a favor do inventariante, acolho as razões manifestadas pelo Espólio de Nelly (fls. 363-372 e 1700/1703), que adoto como razão de decidir e, em consequência, reconheço ter sido claramente demonstrada no processo dita nulidade, ante defeito insanável, em razão da transcrição da alteração contratual junto à JUCERJA ter sido feita somente em 23/08/96, sete meses após sua assinatura exarada em 10/01/96, sendo certo que o sócio pré-morto Jorge Getúlio Veiga faleceu em 12/07/96, transmitindo, nesta data, pois, o domínio e posse da herança aos herdeiros legítimos e testamentários. Assim, o documento de fls. 03/06 não produziu qualquer efeito jurídico em face de terceiros."
Prestando informações, o Juízo do Inventário esclareceu às fls. 459-461:
?...com o fito de decidir questões ainda pendentes que vinham sendo ventiladas e objeto desde 1997, qual seja, a postulada declaração de ineficácia da alteração contratual que consubstanciou na transferência das cotas da sociedade Sapucaia de Máquinas e Motores Ltda., a favor do inventariante, a preço vil e não pago, haja vista ter sido claramente demonstrado trata-se de ?contrato de gaveta?, como afirmado pelo agravado, apresentando defeito insanável, eis que a transcrição desta alteração contratual junto à JUCERJA somente foi realizada 7 meses após a sua celebração e mais de 40 dias da morte do inventariado, não produzindo, pois, qualquer efeito jurídico em face de terceiros, vez que o domínio e a posse da herança transmitem-se na data do óbito aos herdeiros legítimos e testamentários. Por não se tratar de matéria de alta indagação, muito menos de decreto de nulidade de ato, pôde tal questão ser examinada e discutida neste juízo orfanológico.? (sublinhado e negritado acrescidos). (cf. e-STJ fls. 459/461, informações ao relator do AI 2007.002.8659)
Acolhendo o entendimento do Juízo onde tramita do inventário, dispôs o voto condutor do acórdão recorrido (fls. 2.148-2.150):
"Não há falar em incompetência do Juízo orfanológico ao reconhecer a [in] validade da compra e venda de cotas societárias, não sendo caso de remessa as partes às vias ordinárias, porquanto a solução da questão controvertida não encontra quaisquer dos óbices elencados no art. 984, fine, do Código de Processo Civil, constituindo tema de pronta cognição com os elementos probatórios existentes nos autos, à luz dos preceitos normativos aplicáveis à espécie.
(...)
As demais questões controvertidas foram escorreitamente analisadas pelo culto Procurador de Justiça Dr. Luiz Roberto Saraiva Salgado, razão pela qual se integra a esta decisão o seguinte excerto do parecer de fls. 2.064/2.068, na forma regimental:
"Não vemos qualquer ilegalidade na decisão do juiz de primeiro grau que determinou ao inventariante que arrolasse as cotas de capital objeto da alteração contratual referente à Sociedade Sapucaia de Máquinas e Motores Ltda., aditando-se as primeiras declarações.
Com efeito, referida alteração contratual que importou na cessão de cotas do Sr. Jorge Getúlio Veiga (de cujus) para o inventariante e somente foi levada a registro após o óbito daquele, o que impede a produção de efeitos contra terceiros, no caso a agravada, companheira do falecido.
Verifico, dessa forma, que as instâncias de origem adotaram o entendimento de que i) a ex-companheira do falecido é terceira interessada na alteração do contrato da empresa Sapucaia; e ii) o negócio jurídico não produziu efeitos em relação a ela porque o correspondente registro da alteração do contrato social foi efetivado após o óbito, quando a posse e o domínio da herança já haviam sido transmitidos aos herdeiros legítimos e testamentários.
Em acréscimo, implicitamente, acolheram a alegação da recorrida de que o negócio de alienação das quotas sociais se deu por preço vil, sem que tenha ocorrido o pagamento, tratando-se de contrato de gaveta, não havendo necessidade de dilação probatória para corroborar tais conclusões, extraídas da versão unilateral da recorrida (razões de fls. 363-372 e 1700/1703, a que se reporta expressamente a fundamentação da decisão agravada de primeiro grau), por se tratar de ato ineficaz em relação a ela, dado que registrado na junta comercial após o óbito.
Concluo, pois, que o presente recurso especial, no mérito, tem por objeto definir se o exame dessa matéria encontra-se submetido à competência do juízo do inventário, nos autos do próprio inventário, ou se a questão é de alta indagação, devendo ser remetida às vias ordinárias, na forma do art. 984 do CPC/1973, cabendo ainda examinar se a recorrida pode ser considerada "terceiro" em relação ao negócio jurídico celebrado pelo instituidor da herança, temas exclusivamente de direito e devidamente prequestionados.
Diante disso, com a devida vênia do relator, afasto a aplicação da Súmula 7/STJ e passo a examinar o inconformismo do recorrente.
IV
Não se discute que a jurisprudência deste Tribunal consolidou a orientação de que questões de alta indagação, as quais, segundo o art. 984 do CPC/1973, em vigor na época dos fatos e reproduzido no art. 612 do CPC/2015, autorizam o juízo do inventário a remeter o exame da matéria às vias ordinárias, não correspondem ao grau menor ou maior de complexidade do temas jurídicos surgidos no processo sucessório, cujos juízes, evidentemente, estão aptos a dirimir. Questões de alta indagação são aquelas cuja solução demanda a produção de provas que não estão nos autos do inventário e, por exigirem ampla cognição para ser apuradas, não devem ser decididas no estreito âmbito desse procedimento, devendo ser discutidas em ação diversa, nas vias ordinárias.
Nesse sentido, destaco os seguintes precedentes das turmas que compõem a Segunda Seção:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DAS SUCESSÕES. ESPÓLIO. AÇÃO DE CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM DEPÓSITO. CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE BEM IMÓVEL. JUÍZO DO INVENTÁRIO. COMPETÊNCIA.
(...)
3. O processo de inventário, em que se discute apenas questões de direito, destina-se, em regra, a dividir o patrimônio do falecido entre os herdeiros. Ainda que tenha apenas um sucessor, o procedimento é indispensável, pois, de qualquer modo, faz-se necessária descrição pormenorizada de todos os bens que o integram e das dívidas que devem ser satisfeitas.
4. As questões do inventário que demandam "alta indagação" ou "dependerem de outras provas" devem ser resolvidas pelos meios ordinários, nos termos do art. 984 do Código de Processo Civil, o que não significa necessariamente o afastamento do juízo do inventário.
5. Destaca-se a diferença entre juízo e processo. Ao determinar a remessa para os meios ordinários, a lei processual não pretende o afastamento do juízo do inventário de debate a respeito de tema relacionado com a herança, mas que matéria probatória não seja conduzida no processo de inventário, em que se discute apenas questões de direito.
6. Se a ação relaciona-se com a herança, muito embora observe o rito ordinário, por comportar, em tese, dilação probatória, não há óbice para que tenha seu curso regular perante o juízo do inventário. 7. Recurso especial provido.
(RESP 1.558.007/MA, Terceira Turma, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJ 2.2.2016)
PROCESSUAL CIVIL. SENTENÇA DECLARATÓRIA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA DE NULIDADE DE DOAÇÃO. LIQUIDAÇÃO. IMPROPRIEDADE DA VIA. ART. 984 DO CPC. QUESTÕES AFEITAS AO JUÍZO DO INVENTÁRIO.
(...)
4. Cabe ao juízo do inventário decidir, nos termos do art. 984 do CPC, "todas as questões de direito e também as questões de fato, quando este se achar provado por documento, só remetendo para os meios ordinários as que demandarem alta indagação ou dependerem de outras provas", entendidas como de ?alta indagação? aquelas questões que não puderem ser provadas nos autos do inventário.
5. Recurso especial parcialmente conhecido e, na extensão, provido.
(RESP 450.951/DF, Quarta Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJ 12.4.2010)
DIREITO CIVIL. INVENTÁRIO. DOAÇÃO EM VIDA. ART. 1.776, CC/1916. POSSIBILIDADE DE PREJUÍZO DA LEGÍTIMA. ARGUIÇÃO POR UM DOS HERDEIROS. QUESTÃO DE ALTA INDAGAÇÃO. INEXISTÊNCIA. DISCUSSÃO NA SEDE DO INVENTÁRIO. RECURSO DESACOLHIDO.
I - Na linha da doutrina e da jurisprudência desta Corte, questões de direito, mesmo intrincadas, e questões de fato documentadas resolvem-se no juízo do inventário e não na via ordinária.
II - Eventual prejuízo da legítima em face de doação feita pelo pai aos filhos, ainda em vida (art. 1.776, CC/1916), sem haver fatos a provar, prescinde dos "meios ordinários", podendo ser discutido no próprio inventário.
(RESP 114.524/RJ, Quarta Turma, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 23.6.2003)
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO DA VARA DE SUCESSÕES E JUÍZO DA VARA CÍVEL. INVENTÁRIO. DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADES. APURAÇÃO DE HAVERES. ARTS. 984 E 993, PARÁGRAFO ÚNICO, II, DO CPC. QUESTÕES DE ALTA INDAGAÇÃO. EXTENSA DILAÇÃO PROBATÓRIA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA VARA CÍVEL. RECURSO PROVIDO.
1. "Cabe ao juízo do inventário decidir, nos termos do art. 984 do CPC, 'todas as questões de direito e também as questões de fato, quando este se achar provado por documento, só remetendo para os meios ordinários as que demandarem alta indagação ou dependerem de outras provas', entendidas como de 'alta indagação'
aquelas questões que não puderem ser provadas nos autos do inventário" (REsp n. 450.951/DF).
2. Questões de alta indagação, por exigirem extensa dilação probatória, extrapolam a cognição do juízo do inventário, para onde devem ser remetidos apenas os resultados da apuração definitiva dos haveres. Interpretação dos arts. 984 e 993, parágrafo único, II, do CPC.
3. É no juízo cível que haverá lugar para a dissolução parcial das sociedades limitadas e consequente apuração de haveres do de cujus, visto que, nessa via ordinária, deve ser esmiuçado, caso a caso, o alcance dos direitos e obrigações das partes interessadas ? os quotistas e as próprias sociedades limitadas, indiferentes ao desate do processo de inventário.
4. Cabe ao juízo do inventário a atribuição jurisdicional de descrever o saldo advindo com a liquidação das sociedades comerciais e dar à herança a devida partilha, não comportando seu limitado procedimento questões mais complexas que não aquelas voltadas para o levantamento, descrição e liquidação do espólio.
5. Recurso especial provido.
(RESP 1.459.192/CE, Terceira Turma, Rel. p/acórdão Min. João Otávio de Noronha, DJ 12.8.2015)
Considero pertinente observar, a propósito, que o novo CPC, ao reproduzir a regra do art. 984 do CPC/1973 , adotou essa orientação e deixou bem clara a competência do juízo do inventário para o exame de todas as matérias de fato e direito comprovadas nos autos, reservando aos meios ordinários questões que dependam de outras provas não existentes nos autos, nos termos da literalidade do art. 612, assim redigido:
Art. 612. O juiz decidirá todas as questões de direito desde que os fatos relevantes estejam provados por documento, só remetendo para as vias ordinárias as questões que dependerem de outras provas.
No caso presente, entenderam o juízo do inventário e o acórdão recorrido que a ex-companheira é terceira interessada na transferência das cotas sociais da empresa Sapucaia, motivo pelo qual o negócio jurídico somente produziria efeitos em relação a ela após o registro da alteração societária na junta comercial (art. 135 do CC/1916, em vigor à época dos fatos), providência adotada apenas depois de o cedente ter falecido, quando a posse e o domínio das cotas já haviam sido transmitidos aos herdeiros legítimos e testamentários do falecido.
Não são, todavia, os sucessores (herdeiro legítimo ou legatário) e o meeiro terceiros em relação ao patrimônio do inventariado.
Os herdeiros recebem o patrimônio (ativo e passivo) nas condições existentes quando do óbito. A meeira fará jus à metade do patrimônio existente quando do óbito.
Se as cotas societárias haviam sido vendidas, por instrumento particular, antes do óbito, elas não integram o patrimônio a ser partilhado no inventário. A inexistência de registro, na data do óbito, impede sejam produzidos efeitos em relação a terceiros que porventura tivessem relação jurídica com a empresa, como eventuais credores, circunstância não cogitada nos presentes autos.
Mas, independentemente de registro e de autorização da meeira, por se tratarem as cotas societárias de bens móveis, a sua alienação por instrumento particular operou efeitos entre as partes do negócio jurídico, a saber, o vendedor (ora inventariado) e o comprador (o ora recorrente). Aos sucessores e a meeira não será dado partilhar mais direitos do que os que assistiam ao falecido. Se esse já não possuía as cotas quando do óbito, seja porque as vendeu ou mesmo doou, tais bens não integram o acervo hereditário, pelo menos enquanto não invalidado o negócio jurídico, por meio de necessária ação anulatória. E o fundamento da anulação do negócio jurídico não será, naturalmente, o registro tardio, pois esse não é necessário para a produção dos efeitos do negócio jurídico entre as partes e seus sucessores. A causa da anulação haverá de ser algum dos vícios previstos na lei civil ocorridos quando da prática do ato, no caso, a alegada simulação, objeto de apuração na ação ordinária proposta para tal fim pela ora recorrida.
A propósito dos efeitos das alterações societárias antes do registro, elucidativa é a lição de Pontes de Miranda, em seu Tratado de Direito Privado, invocada pelo recorrente:
"Enquanto não se registram as modificações, não podem ser opostas a terceiros, salvo se se alega e prova que eles as conheciam. As modificações, como o contrato, são atos dos sócios, e não da sociedade. Quando se faz o registro, se integram no ato constitutivo da sociedade. Todavia, a satisfação dos pressupostos as faz vinculativas dos sócios. Alguns problemas se levantam a propósito da eficácia no tocante à sociedade. Ela já tem personalidade jurídica, porque se registrou; se as modificações, que os sócios fizeram, e ainda não foram registradas, atingissem a sociedade, atingiriam a pessoa jurídica. Assim, os efeitos que podem ser considerados como de relações jurídicas só entre os sócios são atendíveis; os efeitos que se irradiariam de relações jurídicas entre sócio e a sociedade, ou entre a sociedade e terceiro, só se têm como irradiados após o registro. O que é efeito erga omnes não pode ser modificado sem que se dê a necessária publicidade registrária." (vol. 49, § 5.193 p. 183)
Em síntese, não se cogitando de relação jurídica entre a recorrida e a sociedade, estranha à sua pretensão de partilha dos bens integrantes do espólio do vendedor, submete-se ela aos negócios jurídicos anteriores ao óbito, praticados pelo ex-companheiro na administração dos bens do casal. Os bens móveis por ele vendidos não integram o patrimônio a ser partilhado e não precisavam de outorga uxória para serem alienados.
A circunstância de a alteração contratual não ter sido objeto de registro não altera o fato de que deixaram as cotas de pertencer ao patrimônio do de cujus, tendo o valor obtido com a venda passado a integrar o patrimônio respectivo. O óbito não afeta a validade do negócio e não impede o registro posterior. Apenas os efeitos em relação a terceiros, com os quais a sociedade porventura tenha relação jurídica, dependem do registro na junta comercial.
A propósito, o art. 135 do Código Civil de 1916:
"O instrumento particular, feito e assinado, ou somente assinado por quem esteja na disposição e administração livre de seus bens, sendo subscrito por 2 (duas) testemunhas, prova as obrigações convencionais de qualquer valor. Mas os seus efeitos, bem como os da cessão, não se operam, a respeito de terceiros (art. 1.067), antes de transcrito no registro público."
Da mesma forma, a circunstância de o vendedor haver falecido não impediria o registro da escritura de compra e venda de imóvel, formalidade imprescindível à transferência de imóvel, e nem autoriza a meeira e herdeiros a dispor do bem.
Na verdade, a lesão ao direito da ora agravada, caso tenha mesmo ocorrido, não teve por causa o registro de alteração societária na junta comercial posterior ao óbito do seu ex-companheiro, mas decorreu da eventual negociação pelo inventariado das cotas sociais por preço irrisório, em caráter simulado, de forma a ensejar a redução de sua meação no patrimônio do casal.
Tanto assim o é que ela própria ajuizou ação anulatória de negócios jurídicos com a finalidade de demonstrar a ocorrência de simulação e fraudes destinadas a beneficiar o filho do de cujus (ora agravante), processo que tem por objeto não apenas o ato de transferência de cotas da Sapucaia, em discussão nos presentes autos, mas, também, de outra empresa - Semenge S.A. - Engenharia e Empreendimentos, que afirma a autora representar a parte mais substanciosa do patrimônio constituído pelo casal.
Nesse sentido, destaco as seguintes trechos da petição inicial da ação anulatória (fls. 589-592):
Cabe esclarecer, desde logo, que no intuito de reunir de antemão elementos com que pretende robustecer a prova a ser carreada aos presentes autos, - a autora ingressou no Juízo da 5ª Vara Cível do Rio de Janeiro com a medida cautelar de PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA, ainda hoje em curso, pendentes incidentes processuais provocados pelo requerido e por terceiro, na pessoa da sociedade SEMENGE, como se verificar dos inclusos documentos (docs. nº 2, 3, 4).
Tanto a medida cautelar como a presente ação visam, essencialmente, demonstrar os vícios de que estão eivados os atos de transferência, em favor do réu, na condição de adquirente, por seu falecido pai JORGE GETULIO VEIGA, de 1.699.721,851 (hum milhão, seiscentos e noventa e nove milhões, setecentos e vinte e um mil, oitocentos e cinquenta e uma) ações da empresa SEMENGE S.A. - Engenharia e Empreendimentos, e de 10.450 (dez mil, quatrocentos e cinquenta) quotas do capital da firma SAPUCAIA MÁQUINAS E MOTORES LTDA). São iniciativas judiciais correlatas, valendo a primeira, a rigor, como preparatória da segunda.
No primeiro caso, da SEMENGE, as sobreditas ações teriam sido "vendidas" pelo preço de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais), no segundo caso, da SAPUCAIA, as quotas teriam sido igualmente "vendidas" pelo preço ajustado de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais).
O preço de tais alienações é iníquo, beirando as raias do risível, ou do ridículo, não fossem os aspectos de seriedade e de extrema gravidade com que se consumou o negócio absurdo em detrimento do legítimo interesse da autora.
(...)
Quanto à sociedade Sapucaia, o ato de transferência é uma alteração do primitivo contrato social, nos termos que constam do incluso comprovante.
Em relação a este último, aliás, convém assinalar, desde já, que teria sido assinado e somente levado a registro na JUCERJA MAIS DE SETE LONGOS MESES DE SUA ASSINATURA E QUARENTA E UM (41) DIAS APÓS A MORTE DO SUPOSTO ALIENANTE, JORGE GETULIO VEIGA, resultando de nenhum efeito e sendo alcançada pela sucessão do extinto, conforme demonstrou a A., largamente, no inventário de seu espólio, perante a 8ª Vara de Órfãos e Sucessões, onde espera que se reconheça a flagrante desvalia, sem embargo do curso desta ação e, por este intermédio, da declaração de sua nulidade pelos fundamentos jurídicos ali oferecidos a exame e julgamento.
Já ao propor ação de reconhecimento da união estável e partilha (...) a autora denunciara a trama de que acabou vítima, no que se refere a tão danosas manifestações de seu marido, companheiro e amigo de mais de QUARENTA ANOS de vida em comum, constante e ininterrupta, para servir à ambição desmesurada do filho que, desde modo, acredita haver embolsado a parte mais expressiva do patrimônio, que hoje sonega ao inventário respectivo e, ao mesmo passo, à partilha dos bens integrantes do patrimônio resultante da união estável do "de cujus" com a autora.
A solução dessa controvérsia deverá, portanto, ser precedida de instrução probatória, inclusive com produção de perícia destinada a apurar o valor real das ações e cotas das empresas Sapucaia e Semenge, exigindo ampla cognição sobre a avaliação do patrimônio da sociedade na época dos negócios jurídicos questionados, a fim de permitir seja verificada a alegação de que a transferência de ações e cotas foi efetivada por preço insignificante, elementos que, evidentemente, não estão disponíveis nos autos do inventário e nem podem ser produzidos no juízo das sucessões, circunstância que revela de forma clara que se trata de questão de alta indagação, nos termos da consolidada jurisprudência do STJ citada no início deste voto.
Acrescento que a referida ação anulatória ainda se encontra em tramitação, sendo certo que o AREsp. 509.569/RJ, extraído da referida ação, foi provido por decisão singular do Relator, Ministro Marco Aurélio Bellizze, para cassar o acórdão proferido TJRJ, a fim de que outro julgamento seja proferido nos embargos de declaração opostos por Jorge Getúlio Veiga Filho, ora agravante. Os autos foram remetidos ao Tribunal de origem em 23.10.2015 e lá se encontram aguardando julgamento, conforme verifiquei no página eletrônica do TJRJ.
Observo, ademais, que, a despeito de a decisão do juízo do inventário, integralmente confirmada pelo acórdão recorrido, não ter explicitamente declarado a nulidade da alienação de cotas sociais da empresa Sapucaia, sob o fundamento de terem sido elas negociadas por preço irrisório ou em razão de ter vislumbrado qualquer outro vício de vontade, o fato é que reconheceu "ter sido claramente demonstrado no processo dita nulidade" (fl. 53) e, portanto, caso prevaleça esse entendimento a referida ação anulatória perderá o objeto em relação às transferências de cotas socias da Sapucaia, sem que sequer tenham sido produzidas as provas requeridas até mesmo pela autora da ação (ora agravada), e realizada a ampla cognição exigida para a solução da questão de alta indagação submetida à apreciação judicial, o que contraria a orientação deste Tribunal sobre o tema.
Anoto que o espólio de Nelly Jamal Veiga, ora agravado, admitiu que a nulidade da transferência de cotas da Sapucaia foi reconhecida nos autos do inventário, razão pela qual requereu ao Juízo da 12ª Vara Cível do Rio de Janeiro/RJ, por onde tramita a ação anulatória, a perda de seu objeto em relação à nulidade da transferência de cotas da empresa sapucaia, conforme petição juntada às fls. 41-43 do ARESP 509.569/RJ, acima mencionado, nos seguinte termos:
Cabe esclarecer, a essa altura, que em relação as quotas da empresa SAPUCAIA, objeto também da presente ação, a suposta venda feita ao herdeiro Jorge Getulio Veiga Filho, já foi anulada pelo Juizo da 8' Vara de Órfãos e Sucessões do Rio de Janeiro, em sentença confirmada por acórdão unânime da eg. 17 2 Câmara Cível do TJRJ, e hoje na dependência do julgamento perante a eg. Quarta Turma do STJ, no Agravo de Instrumento n° 1249148, de que é relator o eminente Ministro Raul Araújo Filho. (doc. n° 4) 3 ? Tanto equivale dizer que, atualmente, o autor questiona na qualidade de proprietário na proporção de 50% (cinqüenta por cento) das quotas societárias e ações antes arroladas no acervo hereditário e levadas ao inventário do espólio de JORGE GETULIO VEIGA, mas também das que resultarem da presente demanda.
4 ? Fica evidenciado, d'outra parte, que no caso de desprovimento final do recurso levado a exame da citada Quarta Turma do eg. STJ, - como está persuadido e espera com tranqüila certeza o requerente, terá perdido objeto, na presente ação, a pretensão quanto às quotas da Sapucaia, visto como decidida, no Juizo Orfanológico (r, a anulação ali pleiteada do mesmo instrumento de alienação aqui questionado; e assim, nesta hipótese, já anulado com o fundamento legal neste processo não ventilado e sem embargo do desfecho desta ação (...)
Concluo, pois, que a alegada invalidade da transferência de cotas da empresa Sapucaia de Motores Ltda é matéria de alta indagação a ser decida pelas vias ordinárias, no caso, a Juízo da 12ª Vara Cível do Rio de Janeiro/RJ, por onde já tramita a ação anulatória correspondente.
Ao desconsiderar os efeitos do negócio jurídico entre as partes e sucessores, ao equivocado fundamento de que a meeira seria terceiro em relação ao patrimônio inventariado, e invalidar a compra e venda, supostamente feita a preço vil e não pago - fatos esses controvertidos - nos próprios autos do inventário, sem a necessária instrução, o acórdão recorrido ofendeu, ao meu sentir, o 135 do Código Civil de 1916 e o art. 984 do CPC/73.
Em face do exposto, com a devida vênia do voto do eminente Relator, dou provimento ao agravo interno e, de logo, parcial provimento ao recurso especial, para afastar a determinação do acórdão recorrido de que as cotas sociais da empresa Sapucaia, transferidas ao ora agravante pelo seu falecido pai, sejam colacionadas aos autos do inventário.
É como voto.