RECURSO ESPECIAL Nº 1.361.869 - SP (2013/0011750-1)
RELATOR : MINISTRO RAUL ARAÚJO
RECORRENTE : KIRTON BANK S.A. - BANCO MULTIPLO
OUTRO NOME : HSBC BANK BRASIL S.A.BANCO MULTIPLO
ADVOGADOS : FÁBIO LIMA QUINTAS - DF017721
LUIZ CARLOS STURZENEGGER E OUTRO(S) - DF001942A
RODRIGO DE OLIVEIRA KAUFMANN - DF023866
GABRIELA LEITE FARIAS - DF034060
RECORRIDO : ISMAEL MONTEMURRO
ADVOGADO : EDVAR SOARES CIRIACO E OUTRO(S) - SP150469
INTERES. : DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO - "AMICUS CURIAE"
ADVOGADO : DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO
INTERES. : FEDERAÇÃO BRASILEIRA DE BANCOS - "AMICUS CURIAE"
ADVOGADO : ISAAC SIDNEY MENEZES FERREIRA E OUTRO(S) - DF014533
INTERES. : BANCO CENTRAL DO BRASIL - BACEN - "AMICUS CURIAE"
PROCURADOR : RICARDO FERREIRA BALOTA - SP246432
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO RAUL ARAÚJO (Relator):
Trata-se de recurso especial interposto por HSBC BANK BRASIL S/A BANCO MÚLTIPLO, sucedido, sucessivamente, por BANCO BRADESCO S/A e KIRTON BANK S/A, com fundamento no art. 105, III, a e c, da Constituição Federal, manejado frente a acórdão do eg. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, integrado pelo proferido em embargos de declaração rejeitados (nas fls. 123/126), decidindo, no tocante à legitimidade passiva do HSBC Bank Brasil S/A, que "não restou comprovado que os valores relativos aos depósitos de caderneta de poupança foram excluídos da transferência do ativo. Responsabilidade exclusiva assumida inclusive pelas obrigações relativas às contas de poupança" (na fl. 66).
O acórdão possui a seguinte ementa:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. Liquidação de sentença proferida em Ação Civil Pública proposta por IDEC contra HSBC Bank Brasil S/A - Banco Múltiplo. Débito consolidado no montante apontado na inicial.
CERCEAMENTO DE DEFESA - Indeferimento da perícia contábil. Prova despicienda. Elementos trazidos aos autos suficientes para formar o convencimento do julgador. Certeza quanto aos fatos da causa apresentados pelas partes que formam a convicção do magistrado.
Necessidade de meros cálculos com a incidência de índices conhecidos para delimitar o "quantum debeatur".
ILEGITIMIDADE ATIVA - Coisa julgada. Questão molecular dirimida com o trânsito em julgado da ação civil pública. Possibilidade conferida a todo o poupador que demonstre que foi lesado pela conduta do Banco a dar início à liquidação do julgado em seu domicilio.
Desnecessidade de demonstração do vínculo associativo.
COMPETÊNCIA - Sentença com efeito erga omnes para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores. Faculdade da parte na escolha do local onde promoverá a liquidação.
Possibilidade de se processar tanto no domicílio do liquidante, quanto na localidade em que tramitou a ação condenatória.
ILEGITIMIDADE PASSIVA - Não restou comprovado que os valores relativos aos depósitos de caderneta de poupança foram excluídos da transferência do ativo. Responsabilidade exclusiva assumida inclusive pelas obrigações relativas às contas de poupança. Precedentes jurisprudenciais.
PRESCRIÇÃO - Inocorrência do decurso de vinte anos para a propositura da ação de cognição. Execução individual, precedida de habilitação do crédito, que não superou o lustro prescricional.
CÁLCULOS apresentados em sede de liquidação.
Diferenças existentes nos cálculos das partes que têm como fator preponderante o "dies a quo" dos juros de mora.
JUROS REMUNERATÓRIOS E CORREÇÃO MONETÁRIA - Cabimento de juros remuneratórios e correção monetária, a ser realizada de acordo com a Tabela Prática de Atualização dos Débitos Judiciais do Tribunal de Justiça de São Paulo das datas em que deveriam ter sido realizados os créditos e até o efetivo pagamento, sendo irrelevante a data de encerramento da conta.
JUROS MORATORIOS - Os juros moratórios devem ser contados a partir da citação na Ação Civil Pública no percentual de 0,5% ao mês até 10 de janeiro de 2003 e 1% a partir de 11 de janeiro de 2003.
Recurso desprovido. Prejudicada a análise do pedido de efeito suspensivo" (nas fls. 66/67).
O recorrente sustenta a existência de divergência jurisprudencial e de violação à legislação federal, especialmente no que interessa ao presente, quanto à declaração da legitimidade passiva do HSBC Bank Brasil S/A para responder pelos encargos advindos de expurgos inflacionários em cadernetas de poupança mantidas perante o extinto Banco Bamerindus S/A, por causa da sucessão empresarial havida entre as instituições financeiras.
O recorrido apresentou contrarrazões (nas fls. 232/260).
O recurso especial foi admitido pelo Tribunal de origem sob o regime dos recursos repetitivos (nas fls. 262/264).
Intimados acerca do interesse em aderir ao acordo firmado entre as instituições financeiras e entidades de proteção ao consumidor, homologado pelo eg. Supremo Tribunal Federal, as partes demonstraram seu desapreço, não se manifestando (na fl. 296).
O recurso especial, assim como o REsp 1.362.038/SP, foi afetado para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos pela deliberação colegiada da eg. Segunda Seção do dia 28/5/2019 (nas fls. 313/330), para decidir acerca do tema referente à:
"Legitimidade passiva do HSBC Bank Brasil S/A para responder pelos encargos advindos de expurgos inflacionários relativos a cadernetas de poupança mantidas perante o extinto Banco Bamerindus S/A, em decorrência de sucessão empresarial havida entre as instituições financeiras."
A Defensoria Pública da União - DPU, o Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor - BRASILCON, a Associação de Defesa da Cidadania e do Consumidor - ADECON, o Movimento das Donas de Casa e Consumidores de Minas Gerais - MDCMG, a Federação Brasileira de Bancos - FEBRABAN e o Banco Central do Brasil - BACEN, foram admitidos como amici curiae (nas fls. 344/346).
O BANCO SISTEMA S/A foi admitido como assistente simples.
Entrementes, KIRTON BANK S.A. (nova denominação de HSBC BANK BRASIL S.A - BANCO MÚLTIPLO - sucessor parcial do BANCO BAMERINDUS S.A) e BANCO SISTEMA S.A. (adquirente da massa liquidanda do BANCO BAMERINDUS S.A.) apresentaram petição noticiando que "chegaram ao entendimento de não mais litigar contra terceiros sobre a questão relativa à ocorrência ou não de sucessão do Banco Bamerindus pelo HSBC especificamente no que se refere aos passivos decorrentes de processos judiciais que discutem expurgos inflacionários em caderneta de poupança" (grifou-se, nas fls. 1.535 e 1.537).
Aduzem que "a fim de encerrar a discussão entre as instituições financeiras peticionantes com terceiros (e sem que isso implique qualquer espécie de reconhecimento por qualquer das partes), ambas as instituições financeiras peticionantes se obrigam, de forma irrevogável e irretratável, uma vez homologado por esse Superior Tribunal de Justiça o acordo que ora se apresenta, a não mais questionar em juízo perante terceiros, a sua legitimidade passiva para responder pelos encargos advindos de expurgos inflacionários relativos a cadernetas de poupança mantidas perante o extinto Banco Bamerindus S/A, em decorrência de sucessão empresarial havida entre as instituições financeiras peticionantes, passando essa discussão a ser restrita exclusivamente às instituições financeiras peticionantes" (grifou-se, na fl. 1.537).
Asseguram que, "havendo a homologação judicial do presente acordo, no regime dos recursos repetitivos, as instituições financeiras peticionantes concordam, por consequência da homologação judicial e para todos os efeitos, em não mais recorrer de decisões, no âmbito das liquidações individuais das sentenças coletivas referidas no recurso repetitivo e em ações ajuizadas por poupadores postulando expurgos inflacionários em caderneta de poupança, exclusivamente em relação ao tema 'Legitimidade passiva do HSBC Bank Brasil S/A ou do Bamerindus para responder pelos encargos advindos de expurgos inflacionários relativos à cadernetas de poupança mantidos perante o extinto Banco Bamerindus S/A, em decorrência de sucessão empresarial havida entre as instituições financeiras', (...), estabilizando-se a lide, especificamente quanto ao tema, na forma já decidida nos autos das demandas judiciais em curso, ou, não tendo havido decisão judicial a respeito, na forma do direcionamento dado pela parte autora" (grifou-se, nas fls. 1.537/1.538).
Salientam que, dessa maneira, "encerram de forma definitiva a controvérsia jurídica colocada à apreciação da Corte no presente recurso repetitivo, requerendo, por isso, que seja reconhecida a perda de objeto da questão em julgamento, com a homologação do acordo aqui pactuado, para que seja conferida eficácia ampla e geral ao quanto aqui estabelecido" (griou-se, na fl. 1.538).
Requerem também, que, "como efeito direto desse acordo e em relação ao litígio individual de que cuidam os autos do RESP 1361869 (Recorrido: Ismael Montemurro) e do RESP 1362038 (Recorrido: Celso Lima de Castro), Kirton Bank manifesta a desistência de seu recurso especial no que se refere ao tema 'sucessão HSBC-Bamerindus" (fl. 1.538).
Ao final, pedem que "seja homologado o presente acordo para que se produza todos os seus efeitos jurídicos, no âmbito do regime dos recursos repetitivos, encerrando-se a controvérsia jurídica que cerca a macrolide" objeto do presente recurso repetitivo (na fl. 1.574).
Considerando os diversos aspectos da questão, que merecem melhor avaliação, pelo Colegiado, foi determinada a retirada do recurso da pauta de julgamentos, a intimação das partes e dos amici curiae, pelo prazo comum de 10 (dez) dias úteis, para manifestarem-se e, após, o enviou dos auso ao Ministério Público Federal para o devido parecer.
A FEBRABAN concorda com o pedido, defendendo "que a homologação do acordo apresentado pelas instituições financeiras resolve de forma plena e efetiva a macrolide objeto do repetitivo submetido à apreciação dessa Corte, colocando os terceiros/poupadores (genericamente considerados) em posição jurídica favorável" (na fl. 1.590).
O Banco Central do Brasil, na mesma linha, afirma que "há de se reconhecer que a homologação tem o mesmo efeito do julgamento [da tese repetitiva], o que equivale a reconhecer que houve a supressão da questão jurídica que seria apreciada, caso permanecesse a controvérsia" (grifou-se, na fl. 1.593).
O Ministério Público Federal apresenta parecer pela "homologação do acordo com eficácia erga omnes" (fl. 1.608), considerando, de início, que:
"(...), como bem pontuado por essa culta Relatoria, que ?O presente negócio jurídico processual apresenta-se perante os peticionantes como, efetivamente, um acordo. No entanto sua projeção para terceiros interessados, juridicamente, para as partes, para os órgãos do Ministério Público e para o Estado Juiz, personificado por esta Corte, o instrumento descortina-se como "Pacto de Não Judicialização dos Conflitos", ato jurídico unilateral que após homologado, sob o rito dos recursos repetitivos poderá gerar norma jurídica de eficácia erga omnes e vinculante (art. 927, II, do CPC).? (fls. 1576).
"Quanto ao ponto, mister reconhecer que o Novo Código de Processo Civil incentiva o uso de métodos alternativos de solução de conflitos como mecanismo de celeridade, descongestionamento do sistema judicial e de busca efetiva da prestação jurisdicional.
Assim, considerando que o pacto formulado tem o mesmo efeito prático que o julgamento do Tema 1.015 traria e que inexiste prejuízo aos terceiros poupadores ? muito pelo contrário, uma vez que a legitimidade passiva das instituições bancárias não mais poderá ser oposta a eles -, este Parquet Federal entende que a homologação do acordo/pacto representará um importante incentivo aos mecanismos alternativos de solução de conflitos.
Via de consequência, merece ser acatado o pedido de desistência quanto à tese recursal correspondente no recurso especial" (fls. 1.612/1.613).
Ao final, "opina pela homologação do acordo, como pacto de não judicialização de conflito, reconhecendo-se a legitimidade passiva das Instituições financeiras para responder, perante terceiros, pelos encargos dos expurgos inflacionários relativos às cadernetas de poupança mantidas pelo extinto Banco Bamerindus" (grifou-se, fl. 1.613).
O tema, conforme já alinhavado pelos acordantes, diz respeito à "legitimidade passivo do HSBC Bank Brasil S/A ou do Bamerindus para responder pelos encargos advindos de expurgos inflacionários relativos à cadernetas de poupança mantidos perante o extinto Banco Bamerindus S/A, em decorrência de sucessão empresarial havida entre as instituições financeiras".
Sustentam KIRTON BANK S.A. (nova denominação de HSBC BANK BRASIL S.A - BANCO MÚLTIPLO - sucessor parcial do BANCO BAMERINDUS S.A) e BANCO SISTEMA S.A. (nova denominação da massa liquidanda do BANCO BAMERINDUS S.A.) que "uma vez homologado por esse Superior Tribunal de Justiça o acordo", se comprometem a "encerrar a discussão entre as instituições financeiras peticionantes com terceiros", que, doravante, ficará "restrita exclusivamente às instituições financeiras peticionantes".
Destacam que almejam que seja "homologado o presente acordo para que se produza todos os seus efeitos jurídicos, no âmbito do regime dos recursos repetitivos (...) encerrando-se a controvérsia jurídica que cerca a macrolide".
É o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.361.869 - SP (2013/0011750-1)
RELATOR : MINISTRO RAUL ARAÚJO
RECORRENTE : KIRTON BANK S.A. - BANCO MULTIPLO
OUTRO NOME : HSBC BANK BRASIL S.A.BANCO MULTIPLO
ADVOGADOS : FÁBIO LIMA QUINTAS - DF017721
LUIZ CARLOS STURZENEGGER E OUTRO(S) - DF001942A
RODRIGO DE OLIVEIRA KAUFMANN - DF023866
GABRIELA LEITE FARIAS - DF034060
RECORRIDO : ISMAEL MONTEMURRO
ADVOGADO : EDVAR SOARES CIRIACO E OUTRO(S) - SP150469
INTERES. : DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO - "AMICUS CURIAE"
ADVOGADO : DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO
INTERES. : FEDERAÇÃO BRASILEIRA DE BANCOS - "AMICUS CURIAE"
ADVOGADO : ISAAC SIDNEY MENEZES FERREIRA E OUTRO(S) - DF014533
INTERES. : BANCO CENTRAL DO BRASIL - BACEN - "AMICUS CURIAE"
PROCURADOR : RICARDO FERREIRA BALOTA - SP246432
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO RAUL ARAÚJO (Relator):
- I -
A Nova Jurisdição: Colapso da Jurisdição clássica - Meios alternativos de solução de conflitos - Justiça multiportas - Microsistemas legais adequados - Compliance
?Vem-se reconduzindo a competência dos tribunais ao seu núcleo duro: situações em que é inelutável a prática de um ato heterônomo vinculante". (Paulo Costa Silva. Justiça Multiportas)
1.1. - Colapso da Jurisdição clássica.
Sem apego ao formalismo conceitual acadêmico, parte-se da compreensão de ser a jurisdição a tarefa de solucionar as lides, de pôr fim a litígio qualificado pelo direito.
A garantia do direito constitucional de acesso à prestação jurisdicional de qualidade, ou seja, a célere, efetiva e adequada solução dos conflitos, representa enorme desafio para o Estado brasileiro, assim como para toda a sociedade nacional, em virtude da acentuada atuação deficitária estatal na área.
Segundo o Conselho Nacional de Justiça ? CNJ, durante o ano de 2020 foram propostos perante o Poder Judiciário nacional 25,8 milhões de processos e foram ?baixados? 27,9 milhões, tendo restado 75,4 milhões pendentes de julgamento. Ou seja, considerando-se os resultados desse período, o saldo seria extinto somente após quase 36 anos!
Nesse passo, o em. Ministro Ricardo Vilas Bôas Cueva do Superior Tribunal de Justiça, adverte que ?nos últimos trinta anos, em virtude da expansão de direitos e de desmedidas expectativas de que soluções adjudicadas possam resolver problemas sociais, ao lado de um déficit regulatório que permite seja o Judiciário utilizado como serviço de atendimento ao consumidor de grandes empresas, bem como de sistemas de custas judiciais desuniformes e irracionais, que estimulam o uso oportunista do sistema de justiça, temos vivido o fenômeno da hiperjudicialização, que se traduz no exponencial crescimento do número de processos judiciais" (CUEVA, Ricardo Villas Bôas, Resolução de disputas on line e desjudicialização in., DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro, 2021, Inovações no sistema justiça: Meios alternativos de resolução de conflitos [...], p.641).
Outrossim, Asdrubal Franco Nascimbeni observa que, ?no Brasil, a burocracia, a prática da litigância e os seus reflexos comprometem a imagem do país. Não à toa, o relatório Doing Business, do Banco Mundial que acompanha o ambiente de negócios em 185 países, classificou o Brasil, em 2015, como o 120º país adequado para se realizar negócios. As relevantes repercussões econômicas disso vão desde o retardamento na recuperação judicial de créditos, até a elevação das taxas de juros bancários? (Nascimbeni, Asdrubal Franco. Os meios extrajudiciais de solução de conflitos como forma adequada de pacificação social e a tendência à desjudicialização. Revista de Arbitragem e Mediação. vol. 52. ano 14. p. 228. São Paulo: Ed. RT, 2017).
Deveras, a situação de debilidade da Justiça nacional, com efetivo prejuízo à entrega da prestação jurisdicional de qualidade, agrava-se também em face da crescente complexidade das lides que são próprias da sociedade atual, de modo que, sozinhos, os Tribunais clássicos mostram-se, inaptos a solucioná-las, o que exige foros adequados de solução tanto da massa indistinguível de processos quanto do julgamento especializado das causas inéditas surgidas na globalizada, labiríntica e digital sociedade de massa que pode e deve ser chamada de (pós)moderna.
Basta que se pense, nesse particular, na intrincada natureza dos direitos mais recentemente concebidos como são, a título de exemplo, aqueles ligados à intimidade e à privacidade na sociedade digital, ao gênero sexual, à identidade da pessoa, à concepção da vida humana por mecanismos artificiais e o direito dos embriões.
Nessa linha, no que tange ao direito à privacidade na sociedade digital e à correlata e inédita pretensão do direito ao esquecimento, vem a calhar a lúcida conclusão do em. Ministro Luis Felipe Salomão de que avulta a responsabilidade do julgador ?em demandas cuja solução é transversal, interdisciplinar, e que abrange, necessariamente, uma controvérsia constitucional oblíqua, antecedente, ou inerente apenas à fundamentação do acolhimento ou rejeição de ponto situado no âmbito do contencioso infraconstitucional?, porque ?um dos danos colaterais da "modernidade líquida" tem sido a progressiva eliminação da 'divisão, antes sacrossanta, entre as esferas do 'privado' e do 'público' no que se refere à vida humana', de modo que, na atual sociedade da hiperinformação, parecem evidentes os 'riscos terminais à privacidade e à autonomia individual, emanados da ampla abertura da arena pública aos interesses privados [e também o inverso], e sua gradual mas incessante transformação numa espécie de teatro de variedades dedicado à diversão ligeira" (BAUMAN, Zygmunt. Danos colaterais: desigualdades sociais numa era global. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, pp. 111-113) (REsp n. 1.334.097/RJ, Quarta Turma, julgado em 28/5/2013).
Nessa linha, Fernando Fortes Said Filho, afirma que ?as relações sociais se complexificaram, na medida em que os avanços tecnológicos e o surgimento de direitos supraindividuais (coletivos, difusos e individuais homogêneos) colocaram o Estado na incumbência de apreciar demandas novas, de conteúdos até então não analisados?, expondo o fato de que ?a estrutura do Poder Judiciário não estava preparada para atender às demandas complexas oriundas das novas relações sociais, em razão de exigirem respostas inéditas que, em muitos casos, não podiam ser solucionadas com as leis então vigentes ? típicas de conflitos individual-patrimonialistas? (SAID FILHO, Fernando Fortes. A Crise do Poder Judiciário: Os mecanismos alternativos de solução de conflitos..., in Revista da AJURIS ? Porto Alegre, v. 44, n. 142, junho, 2017, p. 186).
Outrossim, destacando que ?o Estado sofre uma crise em face da incapacidade do paradigma moderno ? negador da complexidade, por meio de fórmulas e conceitos reducionistas ? em responder às demandas produzidas na realidade social contemporânea, em virtude dos limites e das precariedades da dogmática jurídica tradicional?, conclui Said Filho que esse panorama ?mostra a fragilidade do Estado em manter-se com a exclusividade do monopólio de solução de conflitos, sendo necessário se perquirir por instâncias outras capazes de atuar paralelamente à atividade jurisdicional, já que a estrutura tradicional do Judiciário não permite a efetivação de melhores resultados? (idem, p. 190).
O sistema clássico de resolução de conflitos, por meio do uso de fórmulas pré-estabelecidas em processo contencioso suscitado perante Tribunal estatal, gestado historicamente pela premência da afirmação unificadora da autoridade nacional em face das fragmentadas autoridades locais e pessoais, chega ao fim de sua ?vida útil?. Tornando-se inadequado, é sufocado pela enorme quantidade dos velhos conflitos ligados aos fenômenos próprios da sociedade hiperpatrimonialista, assim como pelo originalismo dos litígios que veiculam novos direitos, que representam novas extrações dos direitos constitucionais e que reclamam novo paradigma de resolução.
Dessa forma, embora o Estado ainda possua o monopólio de dizer o Direito, desde as últimas décadas do século passado, tanto no Brasil quanto no estrangeiro, esse ?ônus? vem sendo compartilhado com a sociedade e com os litigantes, em ritmo cada vez mais perceptível e necessário.
1.2. - Meios Alternativos de Resolução de Conflitos (MASCs) - Justiça Multiportas - Microsistemas legais adequados.
A nova forma de resolução dos conflitos, decorrente da necessidade de (i) desafogar o mecanismo clássico da prestação jurisdicional (perspectiva da alternativa), assim como de (ii) prestá-lo com a qualidade esperada (perspectiva da adequação), representa uma Nova Jurisdição. O termo, conforme aqui empregado, por necessidade de abranger a universalidade das coisas, depende de explicação: não se trata somente de evitar que os conflitos aportem ao Judiciário (desjudicialização dos litígios em sentido estrito), ou de repartição dessa tarefa com instâncias não estatais, mas principalmente de solucionar o conflito com a melhor qualidade possível, ou seja, prestação célere, efetiva e adequada, situação que exige a criação de ?ambientes legais? adequados.
Deveras, o novo paradigma que se apresenta conduz à ?ampliação do próprio conceito de jurisdição? (FUX, Luiz, Curso de direito processual civil, 5ª ed. Rio de Janeiro, 2022, Editora Forense, p. 41
Trata-se, então, de alternativa adequada não só ao próprio Judiciário como, principalmente, ao modelo clássico de solução dos conflitos, o que depende de nova cultura Jurídica, novas entidades e de ?ambientes legais? adequados.
O novo padrão que se apresenta é o que dá menor relevância à solução imposta de forma heterônoma, judicial e clássica em prol daquela fundada na negociação e na participação, que lida com a verdade possível, líquida, construída pelo consenso e que é própria desse início de século.
De fato, destacando as ?acentuadas críticas à concepção excessivamente formalista e dogmática do direito e da perspectiva unidimensional da Justiça como aplicadora das disposições legais?, Cesar Felipe Cury, assinala que a ?inadequação da solução mais comumente utilizada - o tradicional processo litigioso - ao tratamento de determinadas espécies de conflitos, desafiou a busca por reais alternativas aos juízos ordinários e aos procedimentos usuais, o que resultou na proposição de oferecimento pelos tribunais de modelos alternativos à via adversarial, preferencialmente por métodos consensuais, como a mediação e a conciliação? (CURY, Cesar Felipe; In.: Justiça Multiportas. Coord. ZANETI JR., Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Vários autores. Salvador: Jus Podivm, 2016. p.487, grifou-se).
A Nova Jurisdição é baseada, não exclusivamente, em Meios Adequados de Solução de Conflitos ? MASCs (chamados de Alternative Dispute Resolution, ADRs, na prática jurídica anglo-saxônica), tais como a negociação, a conciliação, a mediação e a arbitragem, afastando-se do paradigma lastreado na jurisdição e no processo contencioso clássicos.
Não seguindo o esquema judicial tradicional, heterônomo e adversarial, intermediado ou não por terceiros, conduz as partes ao consenso, solucionando a disputa da forma mais adequada às características do direito vindicado e aos interesses dos litigantes, evitando ou finalizando a atuação jurisdicional, embora possam depender de homologação judicial, como forma de se atingir fins que não são próprios do meio empregado, como, por exemplo, a adição da natureza judicial ao título extrajudicial formado por meio de negociação.
Segundo o em. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva do Superior Tribunal de Justiça, ?os métodos alternativos ou adequados de solução de conflitos (também conhecidos pelo acrônimo inglês ADR, de alternative dispute resolution) não dependem da intervenção exclusiva do Poder Judiciário para resolver um litigio, mas de mecanismos extrajudiciais caracterizados por maior celeridade, informalidade, economia, flexibilidade e criatividade. Não excluem totalmente o Poder Judiciário, mas precisam de sua cooperação para a efetividade de seus institutos? (CUEVA, Ricardo Villas Bôas, in., DANTAS, op. cit., p. 642, grifou-se).
Outrossim, fala-se, em adição, do sistema da Justiça de Múltiplas Portas, nome ?que se dá ao complexo de opções, envolvendo diferentes métodos, que cada pessoa tem à sua disposição para tentar solucionar um conflito?, que ?pode ser articulado ou não pelo Estado, envolver métodos heterocompositivos ou autocompositivos, adjudicatórios ou consensuais, com ou sem a participação do Estado? sendo ?mais ou menos amplo em razão de diferentes características do conflito? (LOPES LORENCINI, Marco Antônio Garcia. Sistema Multiportas [...]", in: BRAGA NETO, Adolfo et alii, Negociação, Conciliação, Mediação e Arbitragem [...], p. 44).
Esclarecem Alexandre Coutinho Pagliarini e Jéssica Kaczmarek Marçal Ribeiro da Fonseca que ?é em razão dessas formas alternativas que exsurge, justamente, o termo multi-door courthouse nos Estados Unidos, do qual lançou mão Frank Sander, em 1976, e a qual ele justifica como sendo uma ideia de examinar diferentes formas de solução de controvérsias ? arbitragem, negociação etc., de modo que as disputas sejam direcionadas à porta apropriada para cada uma delas, defendendo, assim, a teoria do sistema de múltiplas portas, que analisa qual o melhor método de solução daquele conflito, posto que não necessariamente seja o Judiciário. O objetivo a partir do conceito de múltiplas portas é mostrar que existem diversas possibilidades para solucionar-se um conflito. Ou seja, que o Judiciário não é a única opção? (Sistema multiportas, arbitragem e direito individual do trabalho: mudança de paradigma. in Revista dos Tribunais: Revista de Arbitragem e Mediação 2020, Ano 17, vol. 67, out.-dez./2020, p. 100).
No Brasil, a concreção da Nova Jurisdição acentuou-se, desde as últimas décadas do século passado com a edição de importantes Diplomas Legais que instituíram relevantes exemplos de Microssistemas que criaram alternativas à atuação jurisdicional estatal clássica: as Leis nº 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública) e nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor) que arquitetaram o Microssistema de Defesa Coletiva do Consumidor; a Lei 9.307/1996 (Lei da Arbitragem); a Lei 9.099/1995 (Juizados Especiais Cíveis); as Lei n° 4.137/62, 8.884/1994 e a Lei nº 12.529/2011, que instituíram e aperfeiçoaram o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).
Assim, cuida-se de modelo baseado em alternativas e em instâncias válidas para a solução adequada dos conflitos que podem ser judiciais (Juizados Especiais) ou extrajudiciais (Câmaras de Conciliação); personificadas (Tribunal Arbitral) ou não (Microssistema de proteção aos direitos consumeristas de forma colegiada, via Ação Coletiva).
Os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, instituídos pela Lei 9.099/1995 (assim como, posteriormente, os Juizados Especiais Federais instituídos pela Lei 10.259/2001) foram criados com a nota do ineditismo de serem o primeiro espécime estatal do sistema da Justiça Multiportas viáveis e evidentes.
Oferecem aos litigantes, no caso do Juizado Cível, a alternativa de ingressarem na porta do processo judicial clássico ou na porta de procedimento mais adequado para solucionar lides que demandem instrução mais simples e célere e que veiculem pretensões relativas a direitos disponíveis, de valores mais módicos, inclusive com a opção de renúncia ao montante que excedesse o valor da alçada. Já o Juizado Criminal, por exemplo, disponibiliza, a inovadora possibilidade da transação penal nos chamados crimes de menor potencial ofensivo.
Trata de pioneira ?porta alternativa? efetiva e viável aberta dentro do próprio Poder Judiciário sendo informado ?pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação? (art. 3º da Lei 9.099/1995).
No que pertine ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) que, conquanto tenha feição marcadamente administrativa, propõe a solução de choques de interesses que, sem isso, certamente seriam solvidos nos Tribunais clássicos através do processo clássico.
Nessa quadra, Humberto Santos destaca que, ?de 2003 a 2020, o CADE celebrou 101 acordos de leniência, com 29 termos aditivos a esses contratos e 23 pedidos de leniência plus. De 2015 a 2020, foram celebrados 297 TCCs, com a impressionante quantia de R$ 3.754.165.334,31 de contribuição pecuniária fixada em favor do Fundo de Defesa de Direitos Difusos ? FDD (Cade em números). Além da obtenção de meios de provas contra outros acusados, o cumprimento desses acordos encerra a discussão sobre eventual cometimento da infração, o que se traduz em celeridade na resolução da contenda e certeza sobre o que restou estabelecido nos acordos, atributos fundamentais para a boa aplicação da política de defesa da concorrência? (Deferência judicial às decisões do CADE e o equilíbrio entre os poderes constituídos, SANTOS, Humberto. Revista de Direito do Consumidor, Vol. 9, nº 2. dezembro 2021, p. 87).
Em suma, o Estado brasileiro já há tempos busca desvencilhar-se do enorme peso representado hiperjudicializaçao própria e da sociedade.
Certamente, além dos exemplos já fornecidos e de outros tantos que podem ser identificados, tem-se, também: os julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF); a Lei nº 11.441/2007, permitindo que inventários, partilhas, separações e divórcios fosse feitos diretamente em Cartório; a Lei nº 12.100/2009, admitindo a retificação extrajudicial de registro de assento civil; a Lei 14.382/2022 prevendo, dentre diversas modificações do Registro Civil de pessoas, a alteração do nome e do prenome, extrajudicialmente, perante o Cartório de Registro Civil; a Resolução nº 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça ? CNJ, prevendo o reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoas acima de 12 anos perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais; a Resolução nº 125 do Conselho Nacional de Justiça e o Provimento nº 1868/2011, criando Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos e Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) e o Sistema de Resolução Concentrada de Macrolides através dos julgamentos de recursos repetitivos ou com repercussão geral.
A realidade descrita é tão evidente que, ?no Código de Processo Civil de 2015, a crise do sistema de justiça acabou por erigir a solução consensual dos conflitos em política de Estado (art. 3º, § 2º, do NCPC), devendo ser a conciliação, a mediação e os outros métodos estimulados por todos os atores processuais, inclusive no curso do processo (art. 3º, § 3º, do NCPC)" (CUEVA, Ricardo Villas Bôas, op. cit, p.641).
Deveras, o Código de Processo Civil estatuiu o princípio da prioritária solução consensual dos conflitos, pois prevê que ?o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos" (art. 3º, § 2º), ou seja, em ouras palavras, a solução heterônoma somente será admitida de forma subsidiária.
Para tanto, o CPC procurou instrumentalizar a regra de que ?a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial? (art. 3º, § 3º), determinando que os Tribunais deverão criar ?centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição? (art. 165).
Paulo Costa Silva, já citado em epígrafe, bem compreendeu o espírito dos tempos atuais (Zeitgeist), fornecendo adequada síntese ao fenômeno aqui tratado ao afirmar que ?vem-se reconduzindo a competência dos tribunais ao seu núcleo duro: a resolução de litígios, com ou sem recurso necessário a esquemas prévios que permitam identificar exatamente a situação em que se impõe o exercício da função jurisdicional, ou seja, as situações em que é inelutável a prátic a de um ato heterónomo vinculante? (SILVA, Paulo Costa e; In.: Justiça Multiportas. Coord. ZANETI JR., Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Vários autores. Salvador: Jus Podivm, 2016. p.773, grifou-se).
1.3. - Governança corporativa
No mundo, já desde o século passado, e no Brasil, mais recentemente, avultam as regras legais (heterorregulação) e procedimentais (autorregulação) criadas para evitar e sanar não só os ilícitos econômicos praticados pela sociedade empresária, especialmente a prática de corrupção, mas também inúmeras condutas indesejadas de diversas ordens que, sem constituírem tipos penais, produzem danos à própria sociedade empresária, assim como externalidades negativas para a concorrência e a liberdade econômica, para o meio ambiente e para a sociedade civil de forma geral.
O conjunto que nos interessa dessas regras, excetuando-se aquelas que tipificam penalmente determinados atos, é complexo e variado, emanando de fontes tanto estatais como supranacionais (Organismos Internacionais). Contudo, nos interessa no presente, as normas de conduta que procedem da autorregulação dos próprios agentes econômicos privados, constituindo o conceito de Governança Corporativa.
Deveras, tem-se entendido que o empenho dos próprios agentes econômicos organizados na forma empresarial é essencial para o desenvolvimento e manutenção de ambiente econômico no qual a competitividade é exercida mantendo-se integridade da conduta empresarial também sob outros aspectos, como o social, o ambiental e o jurisdicional.
1.4.- Responsabilização Social Corporativa
Desse modo, os programas autoimpostos por determinados agentes econômicos fomentam a integridade das condutas no desempenho da atividade econômica.
Deveras, esclarece Lara Pastorello Panachuk que, ?no tocante à efetivação da governança corporativa, ressalta-se que as vias de implementação são progressivamente criadas e cumulativamente aplicáveis', destacando-se dentre as principais estratégias, a 'responsabilidade social corporativa (corporate social responsability), com a perspectiva da empresa 'não somente como unidade exploradora de atividade econômica, dedicada exclusivamente à busca do lucro e à consecução de objetivos privados, mas também como importante personagem da vida social e política? e os programas de compliance, no ?sentido de estar em conformidade ou em acordo com algo, sendo, portando, o substantivo que denota cumprimento, adequação e alinhamento a determinado padrão comportamental? (PANACHUK, Lara Pastorello. Governança corporativa .... Fórum Administrativo ? FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 227, p. 52-65, jan. 2020).
Assim, esse enorme Estatuto, que se característica como um Código Soft Law, identifica a empresa, repita-se, para além da exploração de atividade econômica com finalidade lucrativa e egoística, mas também como personagem essencial da sociedade capitalista, sendo responsável (a par da penal, tributária etc.) por seus atos sob variados e novos enfoques, como sociais, políticos, ambientais e, especialmente, para o presente, sob o enfoque do comportamento da empresa diante do ?balcão? do judiciário.
1.5.- Compliance
Nesse contexto assume crucial importância o conceito de Compliance, gestado no sistema do Direito Comum, derivado da expressão verbal de língua inglesa ?to comply?, significando cumprir, obedecer, estar de acordo com algo, qual seja com o assinalado Estatuto Comportamental de Integridade Global.
Para tanto, o agente econômico deve sempre estar em conformidade, em adequação em alinhamento a determinado padrão comportamental de boa-fé objetiva que dele se espera, cumprindo (to comply) o dever constitucional de promover a função social da propriedade.
- II -
Uso predatório da Justiça e oportunismo judicial - Vedação
Nesse contexto deve-se destacar a advertência feita pelo em. Ministro Ricardo Vilas Bôas Cueva do Superior Tribunal de Justiça, adverte que em face do ?déficit regulatório que permite seja o Judiciário utilizado como serviço de atendimento ao consumidor de grandes empresas, bem como de sistemas de custas judiciais desuniformes e irracionais, que estimulam o uso oportunista do sistema de justiça, temos vivido o fenômeno da hiperjudicialização, que se traduz no exponencial crescimento do número de processos judiciais" (Op. cit., p.641).
É atingida, finalmente, a conclusão de que a perniciosa hiperjudicialização de conflitos que poderiam ser resolvidos por outros modos, é providência vedada à sociedade empresária ou ao empresário que procura estar em conformidade com o citado Estatuto Comportamental de Integridade Global, não porque seja ilegal ou indevida, mas porque é comportamento inadequado aos tempos atuais que reclamam por Nova Jurisdição que seja responsabilidade de toda a sociedade.
A atividade econômica é liberada pela Constituição Federal que, destaca-se, promove seu incentivo, colocando, porém, o único limite de que cumpra sua finalidade social. Logo, é dever dos agentes econômicos, em nome da boa-fé objetiva que deve guiar o comportamento dos membros da sociedade, instituir e incentivar programas (compliance) que ponham limites à hiperjudicialização por eles agigantada, aderindo, a, por exemplo, sistemas de conciliação mediação e arbitragem ou, como deve ser destacado no presente, à própria negociação direta.
- III -
O Acordo
Destaca-se, de início, que o presente negócio jurídico processual apresenta-se perante os peticionantes como, efetivamente, um acordo, no entanto, sua projeção para terceiros qualificados, em especial para o Estado Juiz, personificado por esta Corte, o instrumento descortina-se como "Pacto de Não Judicialização dos Conflitos", negócio jurídico processual que após homologado, sob o rito dos recursos repetitivos, produzirá norma jurídica dotada de eficácia vinculante vertical (art. 927, II, do CPC).
Deveras, os peticionantes, segundo suas próprias palavras, "chegaram ao entendimento de não mais litigar contra terceiros" (passim) acerca do tema objeto de análise no âmbito do presente recurso representativo da controvérsia, cujo julgamento gera precedente qualificado de alcance erga omnes e de efeito vinculante vertical, com relação aos órgãos judiciários submetidos à superposição desta Corte.
Logo, "uma vez homologado por esse Superior Tribunal de Justiça o acordo", encerra-se "a discussão entre as instituições financeiras peticionantes com terceiros", que, doravante, ficará "restrita exclusivamente às instituições financeiras peticionantes" (pass.).
Assim, a homologação do presente acordo, "para que se produza todos os seus efeitos jurídicos, no âmbito do regime dos recursos repetitivos" pôe fim a "controvérsia jurídica que cerca a macrolide" (pass.).
Atingido esse objetivo o presente pacto/acordo de não litigar, representará grande impulso ao uso dos "Métodos Alternativos de Solução de Conflitos" e ao uso do "Sistema Multiportas", consequência de alvissareira prática empresarial da "Boa Governança" e da adoção de programas de "Compliance".
Destaca-se, por fim, que o objeto da afetação não se perde, apenas terá modificada a forma como será introduzido no direito brasileiro como norma jurídica verticalmente vinculante.
Desse modo, propõe-se a homologação do acordo, com eficácia erga omnes, com adoção, para fins do art. 927 do CPC, da tese exposta na seguinte ementa:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA (CPC, ART. 927). AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CADERNETAS DE POUPANÇA E EXPURGOS INFLACIONÁRIOS. LEGITIMIDADE PASSIVA, POR SUCESSÃO. ACORDO E PACTO DE NÃO JUDICIALIZAÇÃO DE LIDES. NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL. MÉTODOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS. SISTEMA MULTIPORTAS. PRÁTICAS EMPRESARIAIS DE BOA GOVERNANÇA. COMPLIANCE. PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO. ACORDO HOMOLOGADO, COMO "PACTO DE NÃO JUDICIALIZAÇÃO DOS CONFLITOS".
1. Pedido de Homologação de Acordo firmado entre KIRTON BANK S.A. (nova denominação de HSBC BANK BRASIL S.A - BANCO MÚLTIPLO - sucessor parcial do BANCO BAMERINDUS S.A) e BANCO SISTEMA S.A. (nova denominação da massa liquidanda do BANCO BAMERINDUS S.A.).
2. Conquanto o presente negócio jurídico processual se apresente perante os peticionantes como, efetivamente, um acordo, em sua projeção para os interessados qualificados, em especial para o Estado-Juiz, o instrumento descortina-se como "Pacto de Não Judicialização dos Conflitos", negócio processual que, após homologado sob o rito dos recursos repetitivos, é apto a gerar norma jurídica de eficácia parcialmente erga omnes e vinculante (CPC, art. 927, III).
3. Homologa-se o acordo entabulado entre KIRTON BANK S.A. (nova denominação de HSBC BANK BRASIL S.A - BANCO MÚLTIPLO - sucessor parcial do BANCO BAMERINDUS S.A) e BANCO SISTEMA S.A. (nova denominação da massa liquidanda do BANCO BAMERINDUS S.A.), como "Pacto de Não Judicialização dos Conflitos", com: a) desistência de todos os recursos acerca da legitimidade passiva para responderem pelos encargos advindos de expurgos inflacionários relativos à cadernetas de poupança mantidas perante o extinto Banco Bamerindus S/A, em decorrência de sucessão empresarial parcial havida entre as instituições financeiras referidas; b) os compromissos assumidos pelos pactuantes de: b.1) não mais litigarem recorrerem ou questionarem em juízo, perante terceiros, especialmente consumidores, suas legitimidades passivas, passando tal discussão a ser restrita às próprias instituições financeiras pactuárias, sem afetar os consumidores; b.2) encerrarem a controvérsia jurídica da presente macrolide, com parcial desistência dos recursos; b.3) conferir-se ao Pacto ora homologado, nos moldes do regime dos recursos repetitivos, eficácia erga omnes e efeito vinculante vertical.
4. 4. Acordo homologado, como "Pacto de Não Judicialização dos Conflitos", com homologação da desistência parcial do respectivo recurso especial, ficando os demais aspectos do recurso encaminhados para julgamento do caso concreto, sem afetação.
IV - Julgamento do caso concreto:
Deve ser Homologado o Acordo, como "Pacto de Não Judicialização dos Conflitos", com a desistência parcial deste recurso especial, promove-se sua parcial desafetação, quanto aos demais aspectos, encaminhando-se o especial para julgamento do caso concreto, no âmbito da eg. Quarta Turma.
É o voto.