RECURSO ESPECIAL Nº 1.623.475 - PR (2016/0230901-2)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : A E J DAS M V
ADVOGADO : CLÁUDIA MELINA KAMAROSKI MUNDSTOCH E OUTRO(S) - PR052440
RECORRIDO : S O
ADVOGADOS : DICESAR BECHES VIEIRA E OUTRO(S) - PR006058
DICESAR BECHES VIEIRA JUNIOR - PR028231
ANDRE CARNEIRO DE AZEVEDO - PR033342
ALEXANDRE FRANCO NEVES - PR059268
RELATÓRIO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):
Cuida-se de recurso especial interposto por A E J DAS M V, fundamentado no art. 105, III, alínea ?a?, da Constituição Federal.
Recurso especial interposto em: 20/10/2015.
Atribuído à Relatora: 15/09/2016.
Ação: divórcio consensual do recorrente e de S O, em que ambos pretenderam, após o trânsito em julgado da sentença homologatória que disciplinou a partilha de bens, fosse homologado um novo acordo por eles celebrado.
Decisão interlocutória: indeferiu o requerimento, ao fundamento de que o acordo anteriormente celebrado pelas partes já havia sido homologado e havia transitado em julgado, bem como pelo fundamento de que o novo acordo era mais amplo do que aquele inicialmente homologado (fl. 135, e-STJ).
Acórdão: o TJ/PR negou provimento ao recurso de agravo de instrumento interposto pelo recorrente, em acórdão que ficou assim ementado (fls. 164/169, e-STJ):
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE DIVÓRCIO CONSENSUAL. COMPOSIÇÃO REALIZADA NA PRESENÇA DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DEVIDAMENTE HOMOLOGADA PELO JUÍZO. PRETENSÃO DE ALTERAÇÃO DAS CLÁUSULAS REFERENTES À PARTILHA DE BENS. DESCABIMENTO.
Descabe pleitear alteração em acordo homologado judicialmente em demanda consensual de divórcio quando observadas todas as formalidades legais e a decisão, inclusive, já transitou em julgado. Para sua desconstituição, indispensável o ajuizamento de demanda própria para apuração de eventual erro ou vício de consentimento.
RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.
Embargos de declaração: opostos pelo recorrente, foram rejeitados (fls. 180/185, e-STJ).
Recurso especial: alega-se violação ao art. 535, II, do CPC/73; e aos arts. 104, 840, 841 e 842, todos do CC/2002 (fls. 188/200, e-STJ).
Ministério Público Federal: opinou pelo provimento do recurso especial (fls. 225/228, e-STJ).
É o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.623.475 - PR (2016/0230901-2)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : A E J DAS M V
ADVOGADO : CLÁUDIA MELINA KAMAROSKI MUNDSTOCH E OUTRO(S) - PR052440
RECORRIDO : S O
ADVOGADOS : DICESAR BECHES VIEIRA E OUTRO(S) - PR006058
DICESAR BECHES VIEIRA JUNIOR - PR028231
ANDRE CARNEIRO DE AZEVEDO - PR033342
ALEXANDRE FRANCO NEVES - PR059268
VOTO
A EXMA. SRA. MINISTRA NANCY ANDRIGHI (Relatora):
Os propósitos recursais consistem em definir: (i) se houve negativa de prestação jurisdicional; (ii) se é possível a homologação de acordo celebrado pelas partes, maiores e capazes, que envolve uma forma de partilha de bens diversa daquela que havia sido inicialmente acordada e que fora objeto de sentença homologatória transitada em julgado.
1) Negativa de prestação jurisdicional. Violação ao art. 535, I e II, do CPC/73.
Inicialmente, verifica-se que não há, no acórdão recorrido, nenhum dos vícios elencados no art. 535, II, do CPC/73.
Nesse sentido, constata-se que o acórdão recorrido pronunciou-se, de forma fundamentada, precisa e exauriente, sobre a questão suscitada pelo recorrente, estabelecendo o entendimento de que as partes não poderiam dispor livremente de seu patrimônio de forma diversa daquela entabulada no acordo judicial primevo, ao fundamento de que tal conduta violaria a coisa julgada material, motivo pelo qual o julgado não padece da reclamada omissão.
2) Possibilidade de celebração de acordo, com disposição diversa dos bens, após o trânsito em julgado da sentença homologatória da primeira avença. Alegada violação aos arts. 104, 840, 841 e 842, todos do CC/2002.
Para melhor contextualizar a controvérsia, destaque-se que o recorrente e a recorrida celebraram, em 18/06/2013, acordo em ação de divórcio, em que ficou estabelecido que os bens imóveis do casal seriam vendidos e partilhados em 50% para cada parte, avençando que os referidos imóveis seriam colocados à venda no prazo de 06 (seis) meses (fls. 90/91, e-STJ).
Por intermédio de petição conjunta protocolizada em 31/07/2014, as partes noticiaram a dificuldade em realizar a venda dos imóveis e requereram a homologação de novo acordo, por meio do qual ficou avençado que a cônjuge virago ficaria com os direitos de posse sobre um determinado imóvel e o cônjuge varão com os demais (fls. 131/134, e-STJ).
A pretensão, todavia, foi indeferida pelo juízo de 1º grau, ao fundamento de que o acordo homologado havia transitado em julgado (fl. 135, e-STJ). O acórdão recorrido, por sua vez, manteve a decisão, acrescentando, ainda, que se trataria de mero arrependimento das partes e que eventual alteração das cláusulas do acordo deveria ser examinada em ação anulatória, em que se precisaria demonstrar a existência de eventual erro ou vício de consentimento (fls. 164/169, e-STJ).
É induvidoso que a controvérsia, na hipótese, envolve pessoas maiores e capazes, que dissolveram o casamento de modo consensual e que dispuseram, inicialmente de determinada forma e agora de outro modo substancialmente distinto, sobre a partilha de um determinado número de bens imóveis privados e disponíveis.
A nova forma de partilhar os bens, aliás, foi expressamente justificada pela dificuldade encontrada pelas partes em cumprir o acordo da forma inicialmente avençada, o que, anote-se, parece bastante plausível diante do lapso temporal transcorrido entre a homologação do primeiro acordo e o pedido de homologação do segundo ? pouco mais de 13 (treze) meses ? sem que tenha havido a venda de nenhum dos bens arrolados.
Nessas circunstâncias, é possível concluir que podem as partes, livremente e com base no princípio da autonomia da vontade, renunciar ou transigir livremente sobre um direito ou um crédito reconhecido judicialmente em favor de uma delas, mesmo após o trânsito em julgado da decisão judicial que os reconheceu ou fixou, do mesmo modo que podem, por exemplo, sequer dar início à fase de cumprimento da decisão judicial ou à execução do título extrajudicial.
Ademais, as partes estavam autorizadas, ainda na vigência do CPC/73, a formar um título executivo judicial a partir da liberdade que possuem para transacionar, bastando que levassem o acordo extrajudicial de qualquer natureza para homologação judicial ou que houvesse, no âmbito de uma relação litigiosa, conciliação ou transação homologada por sentença, ainda que incluísse matéria não posta em juízo (art. 475-N, III e V), podendo, de igual modo, fazê-lo também no CPC/15 (art. 515, II e III).
Diante desse cenário, não se afigura correto indeferir o pedido de homologação de acordo que versa sobre o novo modelo de partilha de bens que as partes entenderam ser mais vantajoso e interessante para elas próprias, ao fundamento de que haveria violação à coisa julgada, que se trataria de mero arrependimento ou, ainda, que a modificação da avença estaria condicionada à propositura de ação anulatória, com demonstração de existência de erro ou de vício de consentimento.
Isso porque, em primeiro lugar, reconhecendo-se que possuem as partes uma gama bastante ampla de poderes negociais, assentados essencialmente na liberdade e na autonomia da vontade, há que não apenas se proteger, mas também efetivamente se estimular a resolução dos conflitos a partir dos próprios poderes de disposição e de transação que possuem as partes.
De outro lado, simplesmente remeter às partes a uma ação anulatória para a modificação do acordo, negando-lhes o acordo modificativo sobre transação havida naqueles próprios autos pouco mais de 01 (um) ano antes, traduz-se, em última análise, no privilégio da forma em detrimento do conteúdo, em clara afronta à economia, celeridade e razoável duração do processo.
Finalmente, anote-se que desde o ano de 2007 podem as partes dissolver consensualmente o matrimônio por eles contraído por escritura pública e independentemente de homologação judicial (art. 1.124-A, caput e §1º, do CPC/73, com a redação dada pela Lei nº 11.441/2007; art. 733, caput e §§, do CPC/15), que, imagina-se, não fora utilizado pelas partes em virtude de, à época do acordo, as filhas do casal ainda serem menores, circunstância que não mais se verifica na atualidade.
Em suma, quando mais se incentiva a desjudicialização dos conflitos e o sistema multiportas de acesso à justiça, mediante a adoção e o estímulo à solução consensual, aos métodos autocompositivos e ao uso dos mecanismos adequados de solução das controvérsias, sempre apostando na capacidade que possuem as partes de livremente convencionar e dispor sobre os seus bens, direitos e destinos do modo que melhor lhes convier (o que se reflete, inclusive no âmbito do processo, com a possibilidade de celebração de negócios jurídicos processuais atípicos a partir de uma cláusula geral ? art. 190 do CPC/15), conclui-se que o acórdão recorrido está na contramão deste movimento e materializa uma injustificável invasividade do Poder Judiciário na esfera privada.
Forte nessas razões, CONHEÇO e DOU PROVIMENTO ao recurso especial, determinando-se ao juízo de 1º grau que, afastado o óbice da coisa julgada material e da necessidade de ação anulatória com demonstração de erro ou vício de consentimento, examine o conteúdo acordo celebrado pelas partes, homologando-o se presentes os requisitos previstos no art. 104 do CC/2002.