Inteiro teor - HC 94632

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HABEAS CORPUS Nº 94.632 - MG (2007/0270707-3) RELATÓRIO O EXMO. SR. MINISTRO OG FERNANDES (Relator): Trata-se de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, com pedido de liminar, impetrado em favor de Pedro Cavalheiro Herrera, no qual se aponta como autoridade coatora a Quarta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, que denegou a ordem em outro mandamus ali intentado, de modo a preservar integralmente a ação penal deflagrada contra o ora paciente. Dessume-se dos autos que o paciente foi denunciado juntamente com outros 11 (onze) acusados, pela prática dos delitos previstos pelo art. 187 da Lei de Falências, c/c o art. 71, caput, art. 171, caput, art. 288, caput e art. 69, todos do Código Penal brasileiro. Sustenta-se na impetração, ter havido a prescrição do delito falimentar, por força do que dispõe o art. 199 do Decreto-Lei nº 7.661/45, e do enunciado da Súmula 147/STF. E mais, pretende que seja declarada a prescrição de todos os crimes que foram imputados ao paciente, aduzindo que o interesse penal protegido pelo Decreto-Lei nº 7.661/45 seria único, qual seja, o direito dos credores ante a superveniente insolvência do comerciante, e assim entendido, todos os atos praticados contra tal direito deveriam ser considerados como um todo único, e que os demais delitos pelos quais foi denunciado estariam absorvidos pelo primeiro. Requereu, inclusive liminarmente, que fosse concedida a ordem de habeas corpus para determinar o trancamento da ação penal nº 024504045603-1, em trâmite perante a 1ª Vara Criminal da Comarca de Santa Luzia/MG, em razão de estar extinta a punibilidade do paciente pela prescrição da pretensão punitiva do Estado. Em sede de cognição sumária, não se verificou manifesta ilegalidade a ensejar a medida de urgência, sendo indeferido o pedido liminar às e-fls. 149/151. As informações solicitadas ao Juízo da Comarca de Santa Luzia/MG foram prestadas às fls. 178/237. Novas informações solicitadas ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais foram prestadas às e-fls. 245/465, 470/475 e 479/483. O Ministério Público Federal, por meio do parecer de e-fls. 174/177, opinou pela concessão parcial da ordem, apenas para reconhecer a prescrição do crime falimentar, devendo prosseguir a persecução penal quanto aos demais delitos imputados ao paciente. O impetrante ainda noticiou o manejo concomitante de recurso ordinário em habeas corpus, atacando o mesmo acórdão do Tribunal de origem, que foi autuado sob a matrícula RHC 22.607/MG e que teve o trâmite indeferido liminarmente na data de 02.08.2010, considerado reiteração do presente writ. É o breve relatório. HABEAS CORPUS Nº 94.632 - MG (2007/0270707-3) VOTO O EXMO. SR. MINISTRO OG FERNANDES (Relator): Preliminarmente, no que diz respeito à prescrição da pretensão punitiva do Estado em relação ao crime falimentar, merece destaque a percuciente manifestação do Ministério Público Federal, da lavra do Eminente Subprocurador-Geral da República Dr. Eugênio José Guilherme Aragão, que assim sintetizou a questão: "A falência foi decretada em 5.8.1999 (fl. 25). A teor do que dispõe o art. 132, § 1.º, do Decreto-Lei n.º 7.661/45, o encerramento deveria ocorrer em 5.8.2001. A Súmula 147 do STF discorre nestes termos: ?A prescrição de crime falimentar começa a correr da data em que deveria estar encerrada a falência, ou do trânsito em julgado da sentença que a encerrar ou que julgar cumprida a concordata.? Portanto, assiste razão ao impetrante quando alega ter ocorrido a prescrição da pretensão punitiva do Estado quanto ao crime falimentar, pelo decurso do lapso temporal de dois anos a contar da data em que se deveria ter encerrado a falência, até o recebimento da denúncia que se deu 21.3.2005 (fl. 92). Outro não é o entendimento do STJ" (e-fl. 176). E assim dispunha o Decreto-Lei nº 7.661/45, no que tange ao prazo para encerramento do processo falimentar, verbis: Art. 132. Apresentado o relatório final, deverá o juiz encerrar, por sentenças, o processo da falência. 1º Salvo caso de fôrça maior, devidamente provado, o processo da falência deverá estar encerrado dois anos depois do dia da declaração. Como se vê, a legislação estabelecia um prazo de dois anos para a conclusão do processo de falência, a partir da decisão que a decretava, constituindo na data do encerramento da falência dies a quo do prazo prescricional de dois anos, a teor da Súmula 147/STF. De fato, infere-se dos autos, que tendo sido decretada a falência da empresa na data de 05.08.1999, a denúncia só foi oferecida em 21.03.2005, mais de três anos e meio após a data em que deveria ter se encerrado a falência. Como bem salientou o Parquet federal, a jurisprudência consagrada no âmbito deste Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal orienta que o prazo prescricional de 2 (dois) anos para os crimes falimentares deve correr a partir da data em que deveria estar encerrada a falência. Nesse mesmo sentido, são os seguintes precedentes: Crime falimentar. Denúncia (recebimento). Contestação do falido (ausência). Nulidade (ocorrência). Prescrição (caso). 1. Antes do recebimento da denúncia por crime falimentar, "poderá o falido contestar as arguições contidas nos autos do inquérito e requerer o que entender conveniente" (Decreto-Lei nº 7.661/45, art. 106). A falta de oportunidade para apresentação da contestação constitui nulidade, evidentemente. Precedentes do STJ, embora haja, em torno do tema, diferentes posições. 2. É antigo o entendimento conforme o qual "a prescrição de crime falimentar começa a correr da data em que deveria estar encerrada a falência" (Súmula 147/STF, do ano 1963). Assim, o marco inicial da prescrição nos crimes falimentares é a data do provável encerramento da falência. 3. Havendo a decretação da quebra ocorrido em 19.3.02, a declaração de nulidade do recebimento da denúncia faz desaparecer o marco interruptivo, sendo forçoso reconhecer que, a esta altura, já se operou a prescrição quanto ao crime de falência. 4. Recurso ordinário provido para se declarar a nulidade dos atos processuais desde o recebimento da denúncia, pronunciando-se, em conseqüência, a prescrição (RHC-20.880, Rel. Min. Nilson Naves, DJ e de 09.03.09) RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME FALIMENTAR. INQUÉRITO JUDICIAL. NULIDADE. DESATENDIMENTO AO PRAZO PREVISTO NO ART. 106, DA ANTIGA LEI DE FALÊNCIAS. OCORRÊNCIA. ENTENDIMENTO DA SUPREMA CORTE. ANULAÇÃO DO PROCESSO-CRIME DESDE A DENÚNCIA, INCLUSIVE. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. OCORRÊNCIA DA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. 1. A teor de entendimento da Suprema Corte, "afirmar que o inquérito judicial não está sujeito a um contraditório rígido, obviamente, não significa dizer que os dispositivos transcritos e, especialmente, o art. 106, são de ser tidos por inúteis, podendo, por isso, ser inobservados sem maiores conseqüências, o que contrariaria elementar princípio de interpretação." (HC n.º 82.222-3/SP, relator p/ o acórdão Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 06/08/2004) 2. Na hipótese dos autos, a denúncia contra a falida foi oferecida antes de aberto o prazo previsto no art. 106, da antiga Lei de Falências, para que pudesse apresentar as impugnações que entendesse necessárias ao inquérito judicial, caracterizando, assim, a nulidade do processo-crime movido em seu desfavor, desde o recebimento da denúncia, inclusive. 3. Nos crimes falimentares o biênio prescricional começa a correr do trânsito em julgado da sentença que encerra a falência, ou de quando deveria estar encerrada. Na espécie, tendo o biênio prescricional se iniciado em 04/05/2001, com a anulação do recebimento da denúncia, verifica-se a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva, já que transcorrido, até o presente momento, mais de cinco anos do marco inicial do prazo prescricional. 4. Recurso provido para, reconhecendo o cerceamento de defesa caracterizado pela ausência do prazo de defesa previsto no art. 106, da antiga Lei de Falências, anular o processo-crime movido em desfavor da ora Recorrente, a partir da denúncia, inclusive. Por conseguinte, com o afastamento da causa de interrupção do prazo prescricional, declaro extinta a punibilidade estatal, em face da prescrição da pretensão punitiva. (RHC-15.723/RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, DJ de 11.9.06) Portanto, é de se reconhecer a prescrição da pretensão punitiva do Estado, no que tange ao crime falimentar imputado ao ora paciente. Todavia, a ação penal em referência ainda apura a suposta prática de outros delitos (artigos 171 e 288, do Código Penal brasileiro). Nesse contexto, a impetração ainda pretende a aplicação do princípio da unicidade do crime falimentar, sendo também declarados prescritos os demais delitos atribuídos ao paciente. O argumento de que devem ser absorvidos os crimes elencados no Código Penal pelo crime falimentar, em razão da complexidade deste, não deve subsistir. O princípio da unicidade estabelece que, havendo o concurso de diversas condutas voltadas ao cometimento de fraudes aos credores da empresa em processo de falência, considera-se a prática de apenas um único tipo penal, para o qual deve ser aplicada a pena do mais grave deles. Entretanto, tal princípio não se aplica no caso de concurso de crimes falimentares e delitos elencados no Código Penal brasileiro, na hipótese, os delitos de estelionato e formação de quadrilha, a não ser que se configure o bis in idem, o que não é o caso. É o que previa expressamente o art. 192 do Decreto-Lei n.º 7.661/45, revogado pela nova Lei de Falências, e que tinha a seguinte redação: Art. 192. Se o ato previsto nesta lei constituir crime por si mesmo, independentemente da declaração da falência, aplica-se a regra do art. 51, parágrafo 1° do Código Penal. O art. 51, § 1º, do Código Penal brasileiro, por sua vez, instituía as regras do concurso formal de crimes, nos seguintes termos: Art. 51. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela. Concurso formal § 1º Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, a que se cominam penas privativas de liberdade, impõe-se-lhe a mais grave, ou, se idênticas, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos. Nessa esteira de entendimento, é o elucidativo precedente deste Superior Tribunal de Justiça, cuja ementa ora se traz à colação, verbis: CRIMINAL. HC. CRIMES FALIMENTARES. QUADRILHA. PRINCÍPIO DA UNICIDADE. APLICAÇÃO SOMENTE AOS CRIMES FALIMENTARES. QUADRILHA. DELITO AUTÔNOMO. CONCURSO MATERIAL. POSSIBILIDADE. INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO CÍVEL PARA O JULGAMENTO. ARGUMENTO ANTERIORMENTE ANALISADO POR ESTA CORTE. REITERAÇÃO DE PEDIDO. NÃO CONHECIMENTO. ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E DENEGADA. I. O princípio da unicidade é ficção criada pela doutrina, a qual dispõe que, no caso de concurso de diversas condutas direcionadas ao cometimento de fraudes geradoras de prejuízos aos credores da empresa submetida ao processo de falência, deve-se entender como praticado um só tipo penal, com a aplicação ao agente somente da pena do mais grave deles. II. Não há que se falar em aplicação do princípio da unidade dos crimes falimentares na hipótese dos autos, pois não se trata de concurso de delitos tipificados apenas na Lei n.º 11.101/2005, uma vez que também foi atribuído ao paciente crime descrito no Código Penal. III. As situações tratadas pelo Estatuto Repressivo, desde que não configurem de bis in idem, devem ser punidas separadamente em relação àquelas compreendidas pelo princípio da unicidade, sendo o caso de concurso material, cumulando-se as reprimendas impostas. IV. Evidenciado que o tema trazido na impetração, referente à incompetência do Juízo Cível para julgar o delito autônomo e distinto do falimentar, já foi apreciado por esta Corte, resta configurada a indevida reiteração de pedido. V. Ordem parcialmente conhecida e, nesta extensão, denegada. (HC 56.368/SP, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 20/11/2006) Do voto apontado como paradigma do tema, da lavra do Eminente Ministro Gilson Dipp, merecem destaque as referências doutrinárias, pelo que se passa a reproduzir: "Ademais, consoante já explicitado, a ficção desenvolvida pela doutrina abrange tão-somente as condutas direcionadas à prática de atos fraudulentos perpetrados em desfavor dos credores da pessoa jurídica, cujos tipos se encontram descritos na referida lei. Neste sentido, trago à colação a seguinte doutrina: ?Todas as infrações praticadas nada mais são do que um complexo unitário de fatos através dos quais se exterioriza um só comportamento, dirigido a um só evento de perigo. O número de crimes e suas conseqüências junto à coletividade de credores podem ser considerados pelo juiz no cálculo da pena-base. Porém, havendo concurso entre crime ou crimes falimentares e crime ou crimes comuns, a pena privativa de liberdade será fixada de acordo com a regra do art. 70 do CP, qual seja, concurso formal de delitos, podendo haver cúmulo material de penas, se decorrerem as infrações penais e falimentares e as comuns de desígnios autônomos (RT 738/619).? (Freitas, Jayme Walmer de; Direito Criminal na recuperação de empresas e falência: lei n.º 11.101/2005; Juris Plenum, Ano I, número 04, de julho de 2005, fl. 44). ?A construção da teoria da unidade do crime falimentar remonta a VON LIST (29) que sustentava que a pluralidade de atos praticados pelo devedor, anteriores à declaração da falência, seria convertida em unidade, por força da declaração da falência, única condição de punibilidade do crime. Na hipótese de ocorrência de fatos dolosos e culposos, a punição deveria recair sobre o crime mais grave, uma vez que revelava a intenção fraudulenta do devedor falido. Essa concepção foi paulatinamente sendo solidificada, tendo a doutrina a ela agregado dois novos argumentos, ou seja, o de que o evento lesivo seria um apenas e que o crime falimentar possui estrutura complexa, consistindo-se em tipos penais de ação múltipla (30). A única exceção à unicidade do crime falimentar ocorria quando um dos fatos configurasse crime comum que merecesse apenação autônoma, o que foi objeto de expressa disposição no Dec. lei n. 7.661\45 (art. 192) (31), determinando a aplicação das regras do concurso formal.? (Vidal, Hélvio Simões; Os tipos penais na nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas; Jus Navigandi; http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7002)." Assim é que as condutas atribuídas ao ora paciente, que configurem tipo penal descrito no Estatuto Repressivo, devem ser apuradas e punidas independentemente dos crimes falimentares compreendidos pelo princípio da unicidade. E não se poderia conceber de outra maneira, porque os delitos comuns imputados ao ora paciente já constituiriam crimes por si sós, mesmo que não houvessem causado prejuízos aos credores, exemplo que bem ilustra a inaplicabilidade do princípio da unicidade nessa hipótese. Ante o exposto, acolhendo o parecer do Ministério Público Federal, concedo parcialmente a ordem habeas corpus, tão somente para declarar prescrita a pretensão punitiva do Estado com relação ao crime falimentar que se imputou ao ora paciente, devendo prosseguir a ação penal para a apuração dos outros delitos comuns pelos quais foi denunciado. É como voto.