Inteiro teor - REsp 664126

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RECURSO ESPECIAL Nº 664.126 - SE (2004/0075309-9) RECORRENTE : FAZENDA NACIONAL PROCURADOR : DANILO AUGUSTO BARBOZA DE AGUIAR E OUTROS RECORRIDO : EDJALMA GOMES SANTOS SANTANA ADVOGADO : CLÁUDIO MIGUEL MENEZES DE OLIVEIRA RELATÓRIO O EXMO. SR. MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKI (Relator): Trata-se de recurso especial (fls. 95-106) interposto com fundamento na alínea a do permissivo constitucional, com o propósito de ver reconhecida a incidência do imposto de renda sobre os valores recebidos pela autora a título de abono pecuniário de férias (previsto no art. 143 da CLT) e licença-prêmio, durante a vigência de seu contrato de trabalho, bem como de ver declarada a prescrição sobre os valores cuja restituição se pretende a esse título. O acórdão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região encontra-se assim ementado: "TRIBUTÁRIO. LICENÇA-PRÊMIO NÃO GOZADA. FÉRIAS VENCIDAS E NÃO GOZADAS. NATUREZA INDENIZATÓRIA. NÃO INCIDÊNCIA DO IMPOSTO DE RENDA. 1. O fato gerador do Imposto de Renda é aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos de qualquer natureza (art. 43 do CTN). 2. A percepção da quantia referente às férias vencidas e à licença-prêmio indenizada não induz em acréscimo patrimonial ou em renda tributável, não estando, portanto, sujeita à incidência do Imposto de Renda. 3. Tratando os autos de tributo sujeito a lançamento por homologação, rendo-me ao entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que o qüinqüênio para a restituição ou compensação conta-se a partir de findo o prazo para a homologação tácita. Prejudicial de decadência rejeitada. 4. Precedentes do TRF da 5ª Região e do STJ. 5. Remessa oficial e apelação improvidas (fl. 92). A recorrente aponta ofensa aos seguintes dispositivos: (a) art. 43 do CTN, na medida em que (a1) sobre as verbas recebidas a título de licença-prêmio e abono pecuniário de férias deve incidir imposto de renda, eis que evidente o acréscimo patrimonial; (a2) no caso, não há como se aplicar as Súmulas 125 e 136 do STJ, uma vez que não foi comprovada a necessidade do serviço, já que o recorrido, por vontade própria, requereu a conversão em pecúnia da licença-prêmio e de parte de suas férias (1/3 - abono pecuniário) - fl. 99; (b) arts. 165, I e 168 do CTN, porquanto o direito à compensação de tributos indevidamente recolhidos prescreve com o decurso do prazo de cinco anos a contar da data de sua extinção (pagamento). Não foram apresentadas as contra-razões. É o relatório. RECURSO ESPECIAL Nº 664.126 - SE (2004/0075309-9) EMENTA TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. PAGAMENTO FEITO A EMPREGADO DURANTE A VIGÊNCIA DO CONTRATO DE TRABALHO. ABONO PECUNIÁRIO DE FÉRIAS E LICENÇA-PRÊMIO NÃO-GOZADA. SÚMULAS 125 E 136/STJ. PRESCRIÇÃO. PRAZO PARA REPETIÇÃO DO INDÉBITO. MATÉRIA PACIFICADA. 1. A jurisprudência consolidada desta Corte considera isentos de imposto de renda os pagamentos decorrentes da conversão em pecúnia de férias e licença-prêmio não-gozados, aplicando, em tais casos, as Súmulas 125 e 136/STJ. 2.O abono pecuniário resultante da conversão de 1/3 do período de férias (CLT, art. 143) tem natureza semelhante ao pagamento decorrente da conversão de licença-prêmio não gozada (Súm. 136/STJ) e da conversão em dinheiro das férias não gozadas (Súm.125/STJ). Desse modo, em observância à orientação jurisprudencial sedimentada nesta Corte, é de se considerar tal pagamento isento de imposto de renda, com ressalva do ponto de vista pessoal do relator. 3. A Primeira Seção consagrou entendimento no sentido de que não havendo homologação expressa do lançamento pela autoridade fiscal, ela se dá tacitamente no final do prazo de cinco anos contados do fato gerador, que, no caso do imposto de renda retido na fonte, ocorre no final do ano-base. A partir de então, tem início o prazo de cinco anos, previsto no art. 168, I, do CTN, para o contribuinte pleitear a restituição dos valores indevidamente recolhidos. 4. O art. 3º da LC 118/2005, a pretexto de interpretar os arts. 150, § 1º, 160, I, do CTN, conferiu-lhes, na verdade, um sentido e um alcance diferente daquele dado pelo Judiciário. Ainda que defensável a ?interpretação? dada, não há como negar que a Lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições interpretadas um dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ, intérprete e guardião da legislação federal. Portanto, o art. 3º da LC 118/2005 só pode ter eficácia prospectiva, incidindo apenas sobre situações que venham a ocorrer a partir da sua vigência. 5. O artigo 4º, segunda parte, da LC 118/2005, que determina a aplicação retroativa do seu art. 3º, para alcançar inclusive fatos passados, ofende o princípio constitucional da autonomia e independência dos poderes (CF, art. 2º) e o da garantia do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI). Ressalva, no particular, do ponto de vista pessoal do relator, no sentido de que cumpre ao órgão fracionário do STJ suscitar o incidente de inconstitucionalidade perante a Corte Especial, nos termos do art. 97 da CF. 6. Recurso especial a que se nega provimento. VOTO O EXMO. SR. MINISTRO TEORI ALBINO ZAVASCKI (Relator): 1. A jurisprudência consolidada desta Corte considera isentos de imposto de renda os pagamentos decorrentes da conversão em pecúnia de férias e licença-prêmio não-gozados, aplicando, em tais casos, as Súmulas 125 e 136/STJ: SÚMULA 125: O pagamento de férias não gozadas por necessidade do serviço não está sujeito à incidência do imposto de renda. SÚMULA 136: O pagamento de licença-prêmio não gozada por necessidade do serviço não está sujeito ao imposto de renda. O abono pecuniário resultante da conversão de 1/3 do período de férias, previsto no art. 143 da CLT, tem natureza semelhante ao pagamento decorrente da conversão de licença-prêmio não gozada e da conversão em dinheiro das férias não gozadas, cujos pagamentos são considerados isentos pelas Súmulas 125/STJ e 136/STJ. Desse modo, em observância à orientação jurisprudencial sedimentada nesta Corte, é de se considerar tal pagamento isento de imposto de renda. Ressalva-se o ponto de vista pessoal contrário à tal orientação, fundamentado em que os referidos pagamentos importam acréscimo patrimonial (fato gerador do imposto, a teor do art. 43, II, do CTN) e não estão contemplados em qualquer hipótese legal de isenção, cuja interpretação não pode ser ampliativa (CTN, art. 111, II). Além disso, destaca-se que as decisões reiteradas deste Tribunal são no sentido de dispensar a exigência de comprovação da necessidade de serviço, constante dos enunciados sumulares retro. Nesse sentido, já se decidiu que "a incidência do Enunciado 136 da Corte não depende da comprovação da necessidade de serviço, porquanto o não-usufruto de tal benefício estabelece uma presunção em favor do empregado" (AgRg no Ag 643.687/SP, 1ª T., Rel. Min. Luiz Fux, DJ. de 27.06.2005) e "... as Súmulas ns. 125 e 136 desta Corte Superior de Justiça não fazem a exigência de que esse benefício não tenha sido gozado em razão da necessidade de serviço (...)" (REsp 331.664/SP, 2ª T., Rel. Min. Franciulli Netto, DJ de 25.04.2005). Também, no mesmo sentido: REsp 426.732/SP, 2ª T., Min. Peçanha Martins, DJ de 25.04.2005; AGA 418.112/DF, 1ª T., Min. Francisco Falcão, DJ de 12.08.2002; AGA 356.587/MG, 2ª T., Min. Francisco Peçanha Martins, DJ de 30.06.2003. Assim, deve ser confirmado o acórdão. 2. No que concerne à prescrição, não merece ser provido o recurso. No que diz respeito ao prazo para pleitear a restituição dos valores indevidamente recolhidos a título de imposto de renda, verifica-se que a acirrada controvérsia entre os ministros integrantes das duas Turmas de Direito Público do STJ restou superada pelo julgamento do ERESP 289.031/SP, Min. Humberto Gomes de Barros, em 27.11.2002, que consagrou entendimento no sentido de que, não havendo homologação expressa do lançamento pela autoridade fiscal (como no caso dos autos), ela se dá tacitamente no final do prazo de cinco anos contados do fato gerador que, em relação ao imposto de renda retido na fonte, ocorre no final do ano-base. A partir de então, tem início o prazo de cinco anos, previsto no art. 168, I, do CTN, para o contribuinte pleitear a restituição dos valores indevidamente recolhidos. Decidiu, assim, a Primeira Seção, quando da apreciação do citado precedente, que, "na repetição de exação indevida de imposto de renda, o prazo prescricional começa a fluir decorridos 5 (cinco) anos, contados a partir da ocorrência do fato gerador, acrescidos de mais 5 (cinco) anos, computados desde o termo final do prazo atribuído ao Fisco para verificar o quantum devido a título de tributo". Finalmente, traz-se à colação, em abono à tese aqui defendida, precedente da 1ª Seção, o ERESP 262.475/DF, Min. Franciulli Netto, julgado em 04.08.2003: "EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. TRIBUTÁRIO. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. IMPOSTO DE RENDA RETIDO NA FONTE. HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA COMPLEXA. TRIBUTO SUJEITO A LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. PRESCRIÇÃO. ERESP N. 289.398/DF. Na assentada de 27 de novembro de 2002, esta Primeira Seção desta Corte Superior de Justiça firmou o entendimento, segundo o qual, na restituição do imposto de renda descontado na fonte, incide a regra geral do prazo prescricional aplicada aos tributos sujeitos à homologação, no sentido de que a extinção do direito de pleitear a restituição ocorrerá após 05 (cinco) anos, contados do fato gerador, acrescidos de mais 05 (cinco) anos da homologação (EREsp n. 289.398/DF, rel. o subscritor deste). Quanto ao termo a quo do prazo prescricional para sua restituição, concluiu-se que a retenção do imposto de renda na fonte cuida de mera antecipação do imposto devido na declaração anual de rendimentos, uma vez que o conceito de renda envolve necessariamente um período, que, conforme determinado na Constituição Federal, é anual. A hipótese de incidência do aludido imposto é complexa, cuja ocorrência dá-se apenas ao final do ano-base, quando se verifica o último dos fatos requeridos pela hipótese de incidência do tributo. Embargos de divergência rejeitados." Foi esse o entendimento adotado no acórdão recorrido ("Tratando os autos de tributo sujeito a lançamento por homologação, rendo-me ao entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que o qüinqüênio para a restituição ou compensação conta-se a partir de findo o prazo para a homologação tácita" - fl. 92), devendo, portanto, ser mantido, com o fim de declarar prescritas tão-somente as parcelas cujo fato gerador ocorreu anteriormente aos dez anos que precederam a propositura da ação. Com relação à recente alteração no CTN, promovida pela LC 118/2005, proferi voto, no ERESP 327.043/DF (rel. Min. João Otávio Noronha), nos seguintes termos: "1. Questiona-se, aqui, (a) a natureza ? se interpretativa ou não - do art. 3º da LC 118/2005, segundo o qual, para efeito de contagem do prazo para a repetição do indébito, deve ser considerado que ?a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado?, bem como (b) a legitimidade do art. 4º, segunda parte, da mesma Lei, que determina a aplicação retroativa daquele artigo 3º, tal como prevê o art. 106, I, do CTN. 2. Em nosso sistema constitucional, as funções legislativa e jurisdicional estão atribuídas a Poderes distintos, autônomos e independentes entre si (CF, art; 2º). Legislar, função essencialmente conferida ao Parlamento, é criar os preceitos normativos, é impor modificação no plano do direito positivo. Já a função jurisdicional - de assegurar o cumprimento da norma, que pressupõe também a de interpretá-la previamente -, é atribuída ao Poder Judiciário. A atividade legislativa está submetida à cláusula constitucional do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (art. 5º, XXXVI), razão pela qual as modificações do ordenamento jurídico, impostas pelo Legislativo, têm, em princípio, apenas eficácia prospectiva, não podendo ser aplicadas retroativamente. A função jurisdicional, ao contrário, atua, em regra, sobre fatos já ocorridos ou em via de ocorrer. Só excepcionalmente pode o Legislativo atuar sobre o passado, assim como só excepcionalmente pode Judiciário produzir sentenças com efeitos normativos futuros. Todos sabemos que essa bipartição não tem caráter absoluto, comportando algumas exceções. Mas a regra geral é essa: o Legislativo produz o enunciado normativo, que vai ter aplicação para o futuro; produzido o enunciado, ele assume vida própria, cabendo ao Judiciário, daí em diante, zelar pelo cumprimento da norma que dele decorre, o que comporta a função de, mediante interpretação, descobri-la e aplicá-la aos casos concretos. São atividades complementares: como dizia Calamandrei, ?O Estado defende com a jurisdição sua autoridade de legislador? (CALAMANDREI, Piero. Instituciones de Derecho Procesal Civil, tradução de Santiago Sentis Melendo, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-América, 1986, vol. I, p. 175). 3. Interpretar um enunciado normativo é buscar o seu sentido, o seu alcance, o seu significado. ?A interpretação?, escreveu Eros Grau, ?é um processo intelectivo através do qual, partindo de fórmulas lingüísticas contidas nos textos, enunciados, preceitos, disposições, alcançamos a determinação de um conteúdo normativo. (...) Interpretar é atribuir um significado a um ou vários símbolos lingüísticos escritos em um enunciado normativo. O produto do ato de interpretar, portanto, é o significado atribuído ao enunciado ou texto (preceito, disposição)? (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, 2ª ed., SP, Malheiros, 2003, p. 78). E observa, mais adiante: ?As disposições são dotadas de um significado, a elas atribuído pelos que operaram no interior do procedimento normativo, significado que a elas desejaram imprimir. Sucede que as disposições devem exprimir um significado para aqueles aos quais são endereçadas. Daí a necessidade de bem distinguirmos os significados imprimidos às disposições (enunciados, textos), por quem as elabora e os significados expressados pelas normas (significados que apenas são revelados através e mediante a interpretação, na medida em que as disposições são transformadas em normas)? (op. cit., p.79). Prossegue o autor: ?A interpretação, destarte, é meio de expressão dos conteúdos normativos das disposições, meio através do qual pesquisamos as normas contidas nas disposições. Do que diremos ser ? a interpretação ? uma atividade que se presta a transformar disposições (textos, enunciados) em normas. Observa Celso Antônio Bandeira de Mello (...) que '(...) é a interpretação que especifica o conteúdo da norma. Já houve quem dissesse, em frase admirável, que o que se aplica não é a norma, mas a interpretação que dela se faz. Talvez se pudesse dizer: o que se aplica, sim, é a própria norma, porque o conteúdo dela é pura e simplesmente o que resulta da interpretação. De resto, Kelsen já ensinara que a norma é uma moldura. Deveras, quem outorga, afinal, o conteúdo específico é o intérprete, (...)'. As normas, portanto, resultam da interpretação. E o ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações, isto é, conjunto de normas. O conjunto das disposições (textos, enunciados) é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um conjunto de normas potenciais. O significado (isto é, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa. Vale dizer: o significado da norma é produzido pelo intérprete. (...) As disposições, os enunciados, os textos, nada dizem; somente passam a dizer algo quando efetivamente convertidos em normas (isto é, quando ? através e mediante a interpretação ? são transformados em normas). Por isso as normas resultam da interpretação, e podemos dizer que elas, enquanto disposições, nada dizem ? elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem (...)? (op. cit., p. 80). 4. Sendo assim e considerando que a atividade de interpretar os enunciados normativos, produzidos pelo legislador, está cometida constitucionalmente ao Poder Judiciário, seu intérprete oficial, podemos afirmar, parafraseando a doutrina, que o conteúdo da norma não é, necessariamente, aquele sugerido pela doutrina, ou pelos juristas ou advogados, e nem mesmo o que foi imaginado ou querido em seu processo de formação pelo legislador; o conteúdo da norma é aquele, e tão somente aquele, que o Poder Judiciário diz que é. Mais especificamente, podemos dizer, como se diz dos enunciados constitucionais (= a Constituição é aquilo que o STF, seu intérprete e guardião, diz que é), que as leis federais são aquilo que o STJ, seu guardião e intérprete constitucional, diz que são. 5. Nesse contexto, a edição, pelo legislador, de lei interpretativa, com efeitos retroativos, somente é concebível em caráter de absoluta excepcionalidade, sob pena de atentar contra os dois postulados constitucionais já referidos: o da autonomia e independência dos Poderes (art. 2º, da CF) e o do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (art. 5º, XXXVI, da CF). Lei interpretativa retroativa só pode ser considerada legítima quando se limite a simplesmente reproduzir (= produzir de novo), ainda que com outro enunciado, o conteúdo normativo interpretado, sem modificar ou limitar o seu sentido ou o seu alcance. Isso, bem se percebe, é hipótese de difícil concreção, quase inconcebível, a não ser no plano teórico, ainda mais quando se considera que o conteúdo de um enunciado normativo reclama, em geral, interpretação sistemática, não podendo ser definido isoladamente. ?Interpretar uma norma?, escreveu Juarez Freitas, ?é interpretar um sistema inteiro: qualquer exegese comete, direta ou obliquamente, uma aplicação da totalidade do Direito? (FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito, SP, Malheiros, 1995, p. 47). Ora, lei que simplesmente reproduz a já existente, ainda que com outras palavras, seria supérflua; e lei que não é assim, é lei que inova e, portanto, não pode ser considerada interpretativa e nem, conseqüentemente, ser aplicada com efeitos retroativos. 6. Ainda que se admita a possibilidade de edição de lei interpretativa, como prevê o art. 106, I, do CTN, mas considerando o que antes se disse sobre o processo interpretativo e seus agentes oficiais (= a norma é aquilo que o Judiciário diz que é), evidencia-se como hipótese paradigmática de lei inovadora (e não simplesmente interpretativa) aquela que, a pretexto de interpretar, confere à norma interpretada um conteúdo ou um sentido diferente daquele que lhe foi atribuído pelo Judiciário ou que limita o seu alcance ou lhe retira um dos seus sentidos possíveis. É o que ocorre no caso em exame. Com efeito, sobre o tema relacionado com a prescrição da ação de repetição de indébito tributário, a jurisprudência do STJ (1ª Seção) é no sentido de que, em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o prazo de cinco anos, previsto no art. 168 do CTN, tem início, não na data do recolhimento do tributo indevido, e sim na data da homologação ? expressa ou tácita - do lançamento. Segundo entende o Tribunal, para que o crédito se considere extinto, não basta o pagamento: é indispensável a homologação do lançamento, hipótese de extinção albergada pelo art. 156, VII, do CTN. Assim, somente a partir dessa homologação é que teria início o prazo previsto no art. 168, I. E, não havendo homologação expressa, o prazo para a repetição do indébito acaba sendo, na verdade, de dez anos a contar do fato gerador. Essa jurisprudência certamente não tem a adesão uniforme da doutrina e nem de todos os juízes. Em muitos casos, eu mesmo já manifestei minha discordância pessoal em relação a ela, como, v;g., no voto vista proferido no ERESP 423.994, 1ª Seção, rel. Min. Peçanha Martins, onde apontei sua fragilidade por desconsiderar inteiramente ?um princípio universal em matéria de prescrição: o princípio da actio nata, segundo o qual a prescrição se inicia com o nascimento da pretensão ou da ação (Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Bookseller Editora, 2.000, p. 332)?. ?Realmente?, sustentei, ?ocorrendo o pagamento indevido, nasce desde logo o direito a haver a repetição do respectivo valor, e, se for o caso, a pretensão e a correspondente ação para a sua tutela jurisdicional. Direito, pretensão e ação são incondicionados, não estando subordinados a qualquer ato do Fisco ou a decurso de tempo. Mesmo em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o direito, a pretensão e a ação nascem tão pronto ocorra o fato objetivo do pagamento indevido. Sob este aspecto, pareceria mais adequado ao princípio da actio nata aplicar, inclusive em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o disposto art. 168, I, combinado com o art. 156, I, do CTN, ou seja: o prazo prescricional (ou decadencial) para a repetição do indébito conta-se da extinção do crédito (art. 168, I), que, por sua vez, ocorre com o pagamento (art. 156, I). Observe-se que, mesmo em se tratando de tributo sujeito a lançamento por homologação, o pagamento antecipado também extingue o crédito, ainda que sob condição resolutória (CTN, 150, § 1º).? Todavia, inobstante as reservas e críticas que possa merecer, o certo é que a jurisprudência do STJ, em inúmeros precedentes, definiu o conteúdo dos enunciados normativos em determinado sentido, e, bem ou mal, a interpretação que lhes conferiu o STJ é a interpretação legítima, porque emanada do órgão constitucionalmente competente para fazê-lo. Ora, o art. 3º da LC 118/2005, a pretexto de interpretar esses mesmos enunciados, conferiu-lhes, na verdade, um sentido e um alcance diferente daquele dado pelo Judiciário. Ainda que defensável a ?interpretação? dada, não há como negar que a lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições normativas interpretadas um dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ, intérprete e guardião da legislação federal. Se, como se disse, a norma é aquilo que o Judiciário, como seu intérprete, diz que é, não pode ser considerada simplesmente interpretativa a lei que dá a ela outro significado. Em outras palavras: não pode ser considerada interpretativa a lei que tem o evidente objetivo de modificar a jurisprudência dos Tribunais. Somente a jurisprudência é que pode, legitimamente, alterar a jurisprudência. 7. Não se nega ao Legislativo o poder de alterar a norma (e, portanto, se for o caso, também a interpretação formada em relação a ela). Pode, sim, fazê-lo, mas não com efeitos retroativos. Admitir a aplicação do art. 3º da LC 118/2005, sobre os fatos passados, nomeadamente os que são objeto de demandas em juízo, seria consagrar verdadeira invasão, pelo Legislativo, da função jurisdicional, comprometendo a autonomia e a independência do Poder Judiciário. Significaria, ademais, consagrar ofensa à cláusula constitucional que assegura, em face da lei nova, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Portanto, o referido dispositivo, por ser inovador no plano das normas, somente pode ser aplicado a situações que venham a ocorrer a partir da vigência da Lei Complementar 118/2005, que ocorrerá 120 dias após a sua publicação (art. 4º), ou seja, no dia 09 de junho de 2005. Tratando-se de norma que reduz prazo de prescrição, cumpre observar, na sua aplicação, a regra clássica de direito intertemporal, afirmada na doutrina e na jurisprudência em situações dessa natureza: o termo inicial do novo prazo será o da data da vigência da lei que o estabelece, salvo se a prescrição (ou, se for o caso, a decadência), iniciada na vigência da lei antiga, vier a se completar, segundo a lei antiga, em menos tempo. São precedentes do STF nesse sentido: "Prescrição Extintiva. Lei nova que lhe reduz prazo. Aplica-se à prescrição em curso, mas contando-se o novo prazo a partir da nova lei. Só se aplicará a lei antiga, se o seu prazo se consumar antes que se complete o prazo maior da lei nova, contado da vigência desta, pois seria absurdo que, visando a lei nova reduzir o prazo, chegasse a resultado oposto, de ampliá-lo" (RE 37.223, Min. Luiz Gallotti, julgado em 10.07.58). "Ação Rescisória. Decadência. Direito Intertemporal. Se o restante do prazo de decadência fixado na lei anterior for superior ao novo prazo estabelecido pela lei nova, despreza-se o período já transcorrido, para levar-se em conta, exclusivamente, o prazo da lei nova, a partir do início da sua vigência" (AR 905/DF, Min. Moreira Alves, DJ de 28.04.78). No mesmo sentido: RE 93.110/RJ, Min. Xavier de Albuquerque, julgado em 05.11.80; AR 1.025-6/PR, Min. Xavier de Albuquerque, DJ de 13.03.81. É o que se colhe, também, de abalizada doutrina, como, v.g., a de Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, 1998, Tomo VI, p. 359), Barbosa Moreira (Comentários ao Código de Processo Civil, Forense, 1976, volume V, p. 205-207) e Galeno Lacerda, este com a seguinte e didática lição sobre situação análoga (redução do prazo da ação rescisória, operada pelo CPC de 1973): ?A mais notável redução de prazo operada pelo Código vigente incidiu sobre o de propositura da ação rescisória. O velho e mal situado prazo de cinco anos prescrito pelo Código Civil (art. 178, § 10, VIII) foi diminuído drasticamente para dois anos (art. 495). Surge, aqui, interessante problema de direito transitório, quanto à situação dos prazos em curso pelo direito anterior. A regra para os prazos diminuídos é inversa da vigorante para os dilatados. Nestes, como vimos, soma-se o período da lei antiga ao saldo, ampliado, pela lei nova. Quando se trata de redução, porém, não se podem misturar períodos regidos por leis diferentes: ou se conta o prazo, todo ele pela lei antiga, ou todo, pela regra nova, a partir, porém, da vigência desta. Qual o critério para identificar, no caso concreto, a orientação a seguir? A resposta é simples. Basta que se verifique qual o saldo a fluir pela lei antiga. Se for inferior à totalidade do prazo da nova lei, continua-se a contar dito saldo pela regra antiga. Se superior, despreza-se o período já decorrido, para computar-se, exclusivamente, o prazo da lei nova, na sua totalidade, a partir da entrada em vigor desta. Assim, por exemplo, no que concerne à ação rescisória, se já decorreram quatro anos pela lei antiga, só ela é que há de vigorar: o saldo de um ano, porque menor ao prazo do novo preceito construa a fluir, mesmo sob a vigência deste. Se, porém, passou-se, apenas, um ano sob o direito revogado, o saldo de quatro, quando da entrada em vigor da regra nova, é superior ao prazo por esta determinado. Por este motivo, a norma de aplicação imediata exige que o cômputo se proceda, exclusivamente, pela lei nova, a partir, evidentemente, de sua entrada em vigor, isto é, os dois anos deverão contar-se a partir de 1º de janeiro de 1974. O termo inicial não poderia ser, nesta hipótese, o do trânsito em julgado da sentença, operado sob lei antiga, porque haveria, então, condenável retroatividade" (O Novo Direito Processual Civil e os Feitos Pendentes, Forense, 1974, pp. 100-101). Câmara Leal tem pensamento semelhante: "Estabelecendo a nova lei um prazo mais curto de prescrição, esse começará a correr da data da nova lei, salvo se a prescrição iniciada na vigência da lei antiga viesse a se completar em menos tempo, segundo essa lei, que, nesse caso, continuaria a regê-la, relativamente ao prazo" (Da Prescrição e da Decadência, Forense, 1978, p.90). 7. Ocorre que o art. 4º da Lei Complementar 118/2005, em sua segunda parte, determina, de modo expresso, que, relativamente ao seu art. 3º, seja observado ?o disposto no art. 106, I, da Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 ? Código Tributário Nacional?, vale dizer, que seja aplicada inclusive aos atos ou fatos pretéritos. Ora, conforme antes demonstrado, a aplicação retroativa do dispositivo importa, nesse caso, ofensa à Constituição, nomeadamente ao seu art. 2º (que consagra a autonomia e independência do Poder Judiciário em relação ao Poder Legislativo) e ao inciso XXXVI do art. 5º, que resguarda, da aplicação da lei nova, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Assim, fica evidenciada a inconstitucionalidade do dispositivo, cumprindo observar, em relação a ele, o disposto no art. 97 da Constituição, instalando-se o devido incidente de inconstitucionalidade. Não basta, para contornar o incidente, simplesmente deixar de aplicar o dispositivo inconstitucional. Ao Judiciário, que está submetido à lei, somente é dado deixar de aplicá-la quando ela for incompatível com a Constituição, o que só pode ser reconhecido e declarado pela maioria absoluta dos seus membros ou dos membros do órgão especial. Bem a propósito, eis a orientação do STF a respeito, em situação absolutamente análoga: ?A declaração de inconstitucionalidade de norma incidenter tantum, e, portanto, por meio do controle difuso de constitucionalidade, é o pressuposto para o juiz ou o Tribunal, no caso concreto, afastar a aplicação da norma tida por inconstitucional. Por isso, não se pode pretender, como o faz o acórdão recorrido, que não há declaração de inconstitucionalidade de uma norma jurídica incidenter tantum quando o acórdão não a declara inconstitucional, mas afasta a sua aplicação, porque tida como inconstitucional. Ora, em se tratando de inconstitucionalidade de norma jurídica a ser declarada em controle difuso por Tribunal, só pode declará-la, em face do disposto no artigo 97 da Constituição, o Plenário dele ou seu Órgão Especial, onde este houver, pelo voto da maioria absoluta dos membros de um ou de outro? (STF, RE 179.170, 1ª Turma, Min. Moreira Alves, DJ de 30.10.98). 8. Ante o exposto, acompanho o entendimento do Ministro relator, mas proponho seja suscitado incidente de inconstitucionalidade da expressão ?observado, quanto ao art. 3º, o disposto no art. 106, I, da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 ? Código Tributário Nacional?, constante do art. 4º, segunda parte, da Lei Complementar 118/2005, submetendo-se a matéria à consideração do órgão especial, na forma dos arts. 199 e 200 do Regimento Interno. É o voto". Invoco os mesmos fundamentos para o caso em exame, ressalvando meu ponto de vista quanto ao incidente de inconstitucionalidade que, no entender majoritário da Turma, é dispensável. 3. Pelo exposto, nego provimento ao recurso especial. É o voto.